Sufoco no animatógrafo

Hollywood sufoca-nos! Nem vale a pena discuti-lo, de tão evidente que é. Hollywood, Bollywood, quase não se distinguem actualmente. E isto mesmo depois de os argumentistas terem regressado ao trabalho. Depois de Hancock vem Wanted: um tem um afro-americano como herói bêbedo; o outro tem uma mulher (Angelina) como heroína impiedosa. Ambos são completamente idiotas e, pior do que isso, deixam a sensação de não haver nada para contar após a devastação pirotécnica. Festivais de efeitos especiais, tudo a explodir e ribombar, muita cabriola e outros malabarismos do imponderável. E depois nada. Uma sensação de vazio que se instala. Poderíamos estar mais duas horas naquilo que não chegaria a preencher nem um milímetro das nossas saudades de cinema.

Sobretudo Wanted, apresentado com charanga e aplauso dos críticos do outro lado do Atlântico (Hancock também caiu nas boas graças de muitos críticos norte-americanos) é de uma sublime parvoeira. Isto quer dizer que nem como filme de acção presta. Pudera: sustentado num argumento que é um autêntico elogio à preguiça de contar histórias, o filme voga entre um fiérico Matrix e um imbecil Hit Man. E acrescente-se que a estrutura de Matrix se encontra lá, intocada: um tipo que é uma nulidade na sua vida quotidiana acaba por se transformar num herói temível. Mas desta feita com corporações de assassinos que são igualmente tecelões (uma injúria ao Vale do Ave!) ou uma corporação de tecelões que são na realidade máquinas assassinas.

E ainda, a animação pseudo-educativa de nome Kung-Fu Panda. Não me surpreendeu: uma animação sobremaneira cuidada, mas mais uma história dentro do mesmo registo. O que perpassa, atravessa, une, estas três produções, é uma fórmula: acredita em ti! Se acreditares em ti consegues! Contra a fatalidade inscrita no teu corpo e deste a sua inscrição no mais vasto corpo social, a crença em si mesmo – o believe, o ver para além da imagem do espelho de águas impolutas de narciso – funciona como a explosão de todas as condicionantes. Há um super-herói dentro de ti – só precisas de acreditar. Nisto, batem-nos à porta as palavras do Dalai Lama; ou as múltiplas apropriações feitas missiva espiritual que podemos encontrar do panda do Kung-Fu à nova coqueluche nacional, o Jasson Associates e o seu Star Tracker. Não por acaso, na ainda insípida biblioteca deste narcísico projecto – massajador dessa coisa informe que é o ego nacional – surgem em grande destaque os livros do Dalai Lama. Vanessa da Mata também berra que devemos escutar as palavras do Dalai Lama – e que elas nos transformarão. Acontece que não é necessário ouvir directamente o que diz o Dalai Lama, não certamente pela boca do mesmo. A sua mensagem encontra-se refractada por tudo o que é manual de boas maneiras para a consecução diária, sê um campeão, mostra quem és, acredita que serás capaz, e etc; e claro, também nessa mega-operação ideológica que dá pelo nome de Hollywood. Nem sempre foi assim. Hollywood foi em tempos o lugar da criação crítica, do subtexto, da revelação, da alteração cultural. Mas não é mais. Actualmente, é apenas a continuação multiplicada das mensagem tanto simplistas quanto impressivas dos manuais de gestão – com muita pirotecnia à mistura.

 

Olhemos então para a Europa. Nesta sobrevive ainda aquela ponta de cepticismo esforçado que herdámos de Montaigne e de Voltaire. Esforçado, porque se trata de esforço e não de assentimento passivo. Um esforço empático; ou seja, uma empatia que nos obriga a um trabalho de identificação, a um trabalho auto-reflexivo e não a uma adesão espontânea e automática. Estamos para além das comoções fugazes que nos prometem os artigos de supermercado. Este território é agreste e não promete super-heróis.

Dois filmes. Filmes com pessoas, apesar da lamechice da expressão. Pessoas e vidas. O primeiro, Happy-go-lucky de Mike Leigh. Quase se diria que é a contrapartida a Naked. Se este último é a explosão do niilismo, da violência, servida logo de início pela cena de violação numa viela londrina, como inscrição dantesca, aqueles que aqui vierem percam toda a esperança, Happy-go-lucky é o olhar pacificado sobre o niilismo inicial. Certamente que Mike Leigh há muito se afastara da brutalidade crua de Naked para se deleitar com o humorismo dramático tingido de crítica social de filmes como Great Expectations ou Segredos e Mentiras.

Mas parece-me inevitável não ver o professor de condução em Happy-go-lucky como o reflexo crítico do Mike Leigh de Naked. Seria assim, um Mike Leigh reencontrado, cujo anjo Poppy representasse um amadurecimento, uma comunhão com a vida. E se as alusões a Naked se encontram a espaços, de forma velada, nas palavras do professor de condução, a acção de Poppy, e o seu olhar faceto perante as conturbadas reacções do seu instrutor, reconduzem-nas sistematicamente à sua dimensão ridícula, ao seu exagero exasperado – o mal satirizado pelo poder do bem. De um lado um anjo – Poppy e a sua generosidade afectiva – do outro, um anjo caído, desesperado, em guerra com tudo e com todos. O mesmo desespero que era a marca de Naked, domado e reduzido à sua caricatura pelo olhar, tanto escarninho quanto apaziguador, de Poppy.

O segundo filme é o “Paris” de Cédric Klapisch. O realizador de “Residencial espanhola” e  “Les pupets russes” tem aqui o seu primeiro filme dramático. Ou não fosse o elenco brindado com a presença luminosa de Binoche. E que presença. Secundada por um Raimond Duris em topo de forma. Paris, pessoas, encontros e desencontros, temática costumeira no cinema françês actual. De Allain Resnais a Leo Carrax – uns mais compostos outros mais atiçados pela histeria herdada da nouvelle vague – lá nos vão contando a história de uma cidade e das suas gentes. Por isso é bem-vindo Klapisch, continuador da tradição dos olhares extasiados sobre Paris; assim como do outro lado do Atlântico Woody Allen se extasia com a sua New York. São realizadores de cidades. São construtores de imagens sobre as cidades; as suas cidades. Como Kafka, Musil, Eça ou Svevo são escritores de cidades (acrescentaria Pessoa, se não o julgasse enfeudado na sua própria cidade interior).

Mas tudo isto para dizer que o cinema, para quem dele sente saudades, está na Europa. Ou melhor, está maioritariamente na Europa. E a razão é simples. A Europa paga os seus realizadores, os estados subsidiam-nos para que possam criar objectos que não falem apenas as linguagens dos manuais de gestão. Outros há, que copiam fielmente Bollywood-Hollywood, e por vezes, igualmente subsidiados. Não importa; o que interessa é que continuem a resistir os inconformados, os seguidores de tradições. Das quais Hollywood foi em tempos estrela máxima. Porém, esgotou-se. O mercado, a venda, o gadget, a repetição da fórmula populista (haverá produção cultural mais populista do que a que sai de Hollywood?) levou-o a um esquecimento da sua verdade, a um golpe de infidelidade com a sua própria matriz. A Europa sobrevive. Com actores, dramaturgias, diálogos, olhares diferenciados, e enredos. Mas quão diferente seria se permitissem que as harpias como Pacheco Pereira espalhassem o seu ódio antisubsídio e transformassem o cinema numa questão de bilheteira?

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