Cuidado com chineses que trazem presentes

imagem retirada daqui

Um ano de Guerra na Ucrânia. A comunicação social fez best of da guerra a toda a hora; como naqueles programas que passam em revista os melhores acontecimentos do ano e que antecedem a passagem do mesmo. Houve generais de carreira a explicarem-nos o que significa invasão em militarês; houve psicólogos a dizerem o óbvio sobre as feridas psicológicas das vítimas; houve economistas a dissertarem sobre recessões e comoções do mercado bolsista; e houve jornalistas, estes, os mais impantes, a descreverem, num ritual tão sinuoso quanto pérfido, as várias etapas da guerra. Parece haver uma conclusão que todos partilham: a guerra veio para ficar.

Os esquerdistas menos radicais desistiram da retórica do perigo do imperialismo americano, ou adquiriram vergonha suficiente para remeter tais pensamentos a ruminações de grupo ou individuais. É hoje claro, para quem não ande com antolhos, que Putin e o seu escol pretendiam anexar a Ucrânia. Coisas simples como a destruição completa do poderio aéreo ucraniano – que parece que já ficou tão longe no tempo – e a destruição, muito posterior, das estruturas energéticas, exigem concluir que a intenção da Rússia sempre foi uma anexão. E no entanto, os mais radicais, esses esquerdistas que não capitulam perante a imbecilidade, insistem ainda que o problema é a provocação da Ucrânia. A única provocação, é hoje evidente, é a de querer existir. Ipso facto, o esquerdismo mais radical não quer que a Ucrânia exista. Nisso, encontra-se muitíssimo bem acompanhado pelo mais primário nacionalismo russo.

A esse propósito convém recordar um opúsculo de Soljenitsyne, intitulado “Como reordenar a nossa Rússia?”, publicado em 1990, no qual o eixo da questão fica exposto com uma clareza invejável. Segundo o escritor, a Rússia, após perder a influência sobre aquilo que se convencionou chamar os países da cortina de ferro, devia também renunciar às suas aspirações expansionistas asiáticas e focar-se na Ucrânia. Se a URSS, no seu desejo imperialista, se expandiu para a Ásia, devia agora – após a queda do muro – deixar que estas ex-províncias se emancipassem da mãe Rússia e se autodeterminassem. As províncias que em tempo foram soviéticas, tinham direito à sua existência independente, mesmo que no perímetro de influência russo. O remédio, contudo, não tinha a mesma aplicação no que à Ucrânia diz respeito. Para esta, e segundo Soljenitsyne, o destino aprazado era a união com a sua mater russa. Kiev havia sido a pátria dos russ e, naturalmente, devia ser devolvida à sua essência mais pristina, fechando assim um ciclo imperial. Sobre a Ucrânia, diz Soljenitsyne:

“Separar hoje a Ucrânia equivaleria a cortar em dois milhões de famílias e pessoas, de tal modo a população está misturada (…) No tecido da população de base, não existe a menor sombra de intolerância entre ucranianos e russos”, e logo a seguir, remata – “Irmãos! Essa horrível separação não se deve consumar! Trata-se de uma aberração nascida dos anos do comunismo.” (27).

Note-se que Soljenitsyne escrevia estas palavras ainda antes da queda da URSS. A reordenação da Rússia, como “mãe rússia” já se prognosticava no estertor do império soviético. Ucrânia era apenas um incómodo que logo deixaria de existir e a sua incorporação natural na pátria russa seria consumada. Ou não se desse o caso de Kiv “onde a terra russa tem a sua origem”, como se diz na Crónica de Nestor, ponto de irradiação do povo que formou a moscóvia.

Quem ler hoje Soljenitsyne tem dificuldade em acreditar que aquele foi o escritor agraciado pelo ocidente pela sua resistência ao totalitarismo soviético. O problema é que, por detrás desta, encobria-se um nacionalismo místico e bélico. Não é por isso inverosímil que desde a invasão da Crimeia em 2014, a anexação da Ucrânia passou a estar nos planos russos. Como se vê pelo exemplo de Soljenitsyne, a ideia de uma Ucrânia regressada ao seio da pátria russa não germinou apenas na cabeça de Putin. Há muito que fazia parte do nacionalismo russo e que se encontrava inscrita nas suas produções culturais e intelectuais. Por conseguinte, ver os actuais acontecimentos, ou como resultado da loucura czarista de um homem, ou como de um escol isolado de oligarcas que o rodeiam, é falhar o essencial. E o essencial é que a ideia de uma reintegração da Ucrânia no território russo faz parte do imaginário colectivo do próprio povo russo. Também por isso a resistência à invasão cedo soçobrou. Sendo certo que o regime de Putin é opressor das liberdades e que não dá margem para resistências, também é verdade que a oposição visível sempre foi esparsa e desenquadrada, devendo-se esta mais a famílias mistas, russo-ucranianas, do que a uma vaga de fundo de indignação nacional.

Ouvindo o Presidente da autoridade russa no Donbass, outra hipótese, que não seja a da anexação, parece não ter cabimento no pensamento russo. Quando questionado sobre as intenções futuras dos russos, foi dizendo que o Donbass era inegociável; mas para além disso, como tinha sido fornecido à Ucrânia material bélico com capacidade de 300 km, a região só estaria segura se esses 300 km estivessem também sob controlo.

Só quem é parvo é que não percebe que este raciocínio encerra uma petição de princípio: como os 300 km sempre se deslocam mais para o interior, o fim da regressão é a total anexação. O que o Presidente do Donbass queria dizer é que a Rússia só ficaria satisfeita com o desaparecimento da Ucrânia.

Por isso, para a Rússia, não existe outro caminho possível que não seja a guerra total. E para a Ucrânia, não existe outro caminho possível que não seja a total capitulação do inimigo. Quando assim é, as guerras vencem-se pelo desgaste do seu prolongamento indefinido. Foi assim no Vietname, e foi assim no Afeganistão. O problema é que a Ucrânia não tem a capacidade armamentista necessária para um período tão alargado de tempo. E o Ocidente pode cansar-se do seu próprio desgaste, económico e, a ver vamos, se não será também político.

Putin conta com este desenlace. Investiu demasiado dinheiro, homens e tempo para agora recuar. E é neste contexto que surge o plano de paz chinês.

A China, desde o início que tem tido uma posição hipócrita. Há quem lhe chame ambígua, mas não existe nada de ambíguo nas posições que a China tem tomado em relação à invasão da Ucrânia. Pelo contrário, elas são frontalmente a favor da Rússia. Desde o apoio dado nas Nações Unidas, através da abstenção, até ao actual pretenso plano de paz, a China tem vindo a demonstrar a sua solidariedade indefectível com a Rússia. Nessa leitura, é fácil fazer uma exegese do documento chinês. Algo que, tanto especialistas em segurança norte-americanos como ucranianos se apressaram a fazer.

Primeiro, em nenhuma parte se fala em invasão da Ucrânia. Ora isto poderia até passar por exigência inerente à posição do broker – ou seja, o mediador não hostiliza uma das partes, neste caso a Rússia. Mas, como bem perceberam os ucranianos, o primeiro ponto diz exactamente o que pretendem os chineses… e nesse aspecto, é uma tradução fiel das exigências russas.

The sovereignty, independence and territorial integrity of all countries must be effectively upheld. (…) Equal and uniform application of international law should be promoted, while double standards must be rejected.

 Estas duas frasezinhas que aqui recorto do primeiro ponto, trazem o essencial da questão; e tornam os itens restantes mero fait divers. Com efeito, o que elas dizem é que a soberania das duas partes deve ser respeitada. Ora, como apenas uma das partes tem, objectivamente, a soberania ameaçada – e essa é a Ucrânia – a “rejeição do duplo standard”, mencionado no final, só pode querer significar a ratificação da soberania russa sobre os territórios ocupados. Aceitar este plano de paz, significaria ratificar as pretensões russas à soberania dos territórios ocupados até agora, sob o pretexto que foram referendados pelo povo, e assim tornados russos. Haverá maior cinismo do que este da parte da China?  

Mas porque é que o papel da China é tão fundamental e simultaneamente tão criticável? Porque a China, sozinha, podia acabar com esta guerra. Não o faz, porque tem interesse em sustentá-la. E por isso tem apoiado economicamente a Rússia, provendo a que a choque das sanções seja substancialmente atenuado.

Um ano volvido de silêncio chinês perante as atrocidades russas resultou neste plano de paz. “Temo os chineses mesmo quando estes me dão presentes” – parafraseando Virgílio e as palavras que este coloca na boca de Laocoonte perante o cavalo de Tróia.

Uma questão de ética

Grassa na sociedade portuguesa actual uma sede por transparência; pelo escrutínio e ponderação das escolhas, pela total rectidão dos processos e pela fina vigilância do olho público. Este imenso aparatus, tomando forma actualmente num “mecanismo de escrutínio” dos futuros governantes possui as dimensões de um big brother. Mas, como nas estórias do Asterix, foi toda a sociedade portuguesa capturada por esta vertigem da transparência e do escrutínio? Não, apenas o Estado e, por implicação minimalista, o governo.

As cruzadas morais contra o Estado são sempre fáceis e acabam invariavelmente em desastre. Desde o atentado ao Reichtag até à invasão do capitólio norte-americano e do planalto brasileiro, o que estes acontecimentos possuem em comum é a profunda desconfiança, instilada nos seus apoiantes, contra a democracia e os partidos. As três ocorrências aqui mencionadas – e a lista seria bem maior – decorreram invariavelmente da suspeita levantada sobre a fidelidade dos resultados eleitorais. O partido Nazi, com a sua hierarquia de gauleiters, começou por contestar resultados das eleições municipais, passando para as estatais e finalmente as federais. Os outros dois acontecimentos encontram-se demasiado presentes na memória colectiva para dispensarem explicações. O ponto é que este estratagema é antigo e que os “heróis” do capitólio e do planalto não estão a inventar novas formas de expressão política, estão a ser movidos por estratégias de eficácia comprovada que sustentaram subidas ao poder de líderes autoritários. Por isso, aquilo que pareceu novidade em Trump, numa situação de normalidade política e democrática, não foi mais do que o ressuscitar de velhas fórmulas fascistas.

Este circunlóquio serve apenas para salientar que as forças e movimentos autoritários lançam sistematicamente a desconfiança sobre os processos do Estado. Porém, significa isso que se trata de uma reacção de uma sociedade mais ética contra a falta de ética desses procedimentos? Invariavelmente, não. E aí reside a profunda hipocrisia desta vertigem pela transparência. Ela convive pacificamente com a dispersão capilar da falta de ética nas nossas práticas e procedimentos. Uma lista não muito exaustiva e com a espontaneidade do correr da escrita pode aqui ser elencada; como segue.

Será ético os fechos de empresas porque é mais rentável especular com o valor do seu lugar físico? Será ético que os rendimentos das empresas aumentem, mas os salários não acompanhem na mesma proporção esse aumento quando ele é alicerçado na subida artificial de preços? Será ético trabalhadores serem sujeitos a bullying e assédio moral nos seus empregos? Será ético ter trabalhadores a trabalharem bem para além do horário de trabalho legalmente estabelecido sem lhes pagar o equivalente? Será ético aproveitar ao máximo a capacidade de trabalho dos indivíduos diminuindo sistematicamente a força de trabalho para o mesmo trabalho? Por que nos incomoda tanto as entradas por cunhas no Estado quando a iniciativa privada se encontra repleta de “dinastias familiares”; quando é comum nas pequenas e médias empresas portuguesas o patrão se comportar como um patter familias que distribui pela sua prole os lugares-tenentes da organização, independentemente da competência dos parentes arrolados ao negócio de família? A resposta contundente é que nenhuma destas coisas é eticamente aceitável.

Contudo, aprendemos a acomodá-las silenciosamente nos nossos quotidianos. Passaram a fazer parte da ordem das coisas. Porquê? Por que o nosso entendimento delas é estruturado pelo pressuposto da incomensurabilidade entre o público e o privado. No primeiro, exigimos máximo rigor e escrutínio; ao segundo, fechamos os olhos e dizemos “isso é parte da liberdade privada”. Mas porquê? O que faz com que tenhamos uma ponderação tão desequilibrada consoante aplicamos os nossos critérios de sensatez a um ou ao outro lado da barreira?

Uma das razões mais operativas para que assim aconteça é o excesso de exposição a que o público está sujeito. Excesso discursivo, argumentativo e legalista, que não atinge o domínio privado. A justificação fundamental é que isso ocorre porque o público é fruto do contributo dos cidadãos e por isso a sua responsabilidade de accountability é muito maior. Na medida em que pagamos os serviços públicos com os nossos impostos, é expectável que estes nos prestem contas. É de facto uma noção estreita de riqueza colectiva. E mais estreita ainda de ética. Porque se a responsabilidade que tão pressurosamente assacamos ao Estado e à sua administração é de natureza ética, mal se vê porque razão o padrão de julgamento seria diferente. Ou temos uma ética para o que nos convém e outra para ao qual não queremos a intromissão? Isso é próprio da negação de um sentimento ético universal.

Por outro lado, esta hiper-vigilância dos procedimentos públicos concorre para a paralisia do Estado. E nessa medida funciona como uma profecia autorealizadora: profetiza-se a ineficiência do Estado e pela exigência organizacional que lhe é colocada, ele acaba mesmo por se tornar ineficiente. Por isso, esta perseguição ética não é inocente. Ela tem levado, inclusivamente, à crescente desconfiança dos cidadãos em relação à democracia. Porque quando se ataca o Estado e os políticos, que são a estrutura material e humana da democracia (até outra ser inventada) está-se ipso-facto a atacar a democracia; a fragilizar os seus propósitos e mecanismos. Porque se tudo é corrupção porque razão hei de dar o meu plebiscito para o prolongamento desse status quo? É aqui que aparecem os homens providenciais, tais como Trump, Bolsonaro, Erdogan, e Ventura gostaria de ascender a essa categoria com certeza. A mensagem destes senhores, invariavelmente, nega a democracia propondo ao povo um autoritarismo bem-temperado.

Finalmente, quer isto dizer que a sociedade eticamente inatacável é o que deve existir? De modo nenhum. A sociedade é eticamente imperfeita e dificilmente será outra coisa. O que é pernicioso é assestar a lente aumentativa ética apenas para um sector da sociedade na medida em que o efeito de um tal movimento é deixar na sombra tudo o resto.  

Brasil – round 2! Ou “Deus é nós”.

Curiosamente, o mentiroso patológico que é Bolsonaro (e Trump não era a mesma coisa?) não gritou a reunir apelando para o motim eleitoral. A recente rábula da fraude eleitoral não seria muito compreensível quando o PL, partido de Bolsonaro, ganhou nos estados com mais eleitorado, como sendo SP e Rio de Janeiro, elegendo os seus senadores. Por outro lado, nunca o PL teve tantos membros na câmara alta do congresso brasileiro. Por isso, na noite das eleições, da parte dos petistas era visível que a alegria pela vitória de Lula era algo contida.

Bolsonaro, perante este cenário, foi mais contemplativo do que se esperava. E embora tivesse lançado as costumeiras farpas às sondagens, fê-lo com fleuma de vitorioso. Como é seu timbre, no entanto, disse apenas meia-verdade. As sondagens erraram retumbantemente em relação a Bolsonaro; mas acertaram em relação a Lula. Assim, 5 delas realizadas entre dia 27 e 30 colocavam Lula no intervalo entre 47 e 49. Lula, como é sabido, obteve 48,4% dos votos. A diferença foi de facto o voto em Bolsonaro cujas sondagens colocavam a 12 pontos de diferença de Lula.

Houve quem lhe chamasse o voto envergonhado. Talvez se compreenda quando as sondagens são conduzidas presencialmente, como é o caso da Datafolha. Mas percebe-se mal quando estas são online ou por telefone, como são as da Atlas ou da Poderdata. Aliás, no panorama actual de polarização, os eleitores bolsonaristas teriam vergonha de quê?  Creio que o melhor que lhe podemos chamar é a intenção de voto mentirosa. Os eleitores não dizem a sua real orientação do voto porque simplesmente desconfiam do “sistema”.

Esta palavra “sistema” não é de somenos. Ela enquadra uma parte considerável da propaganda bolsonarista. E tal como no trumpismo, o sistema é uma coisa indefinida, mas que ameaça o cidadão comum. O que seja o sistema é o que diz o líder que ele deve ser. E o líder diz o que é o sistema, pelas coisas negativas que lhe atribui. Assim, dentro da lógica “Bolsonaro – o mito!”, inscrita em vários cartazes empunhados pelos seus apoiantes, se o líder diz mal das sondagens, então é porque estas pertencem ao sistema; se diz mal dos políticos, é porque estes pertencem ao sistema; se diz mal dos impostos, é porque estes não são mais do que criações do sistema; e por aí afora. É, por conseguinte, difícil não perceber que a lógica do “sistema” é a de atribuição do poder de condenação ou absolvição ao líder todo-poderoso.

Por essa mesma ordem de ideias, teve Bolsonaro um padre nos debates que acabou por obter 0,1% dos votos. Mas a sua função não era ganhar eleitorado. Como depressa se percebeu, a sua função era a de abençoar Bolsonaro. Que melhor efeito de sacralização do que ter um padre nos debates televisivos a caucionar todas as medidas de Bolsonaro, dando-lhe assim uma espécie de bênção política que, menos ligada às coisas terrenas, se liga pelo poder simbólico do nome “padre” às coisas sagradas? Não nos tinha Bolsonaro habituado às correntes de energia patéticas que os seus correligionários, mais um pastor evangelista, ritualizam nas suas aparições públicas?  O “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos” estampado nas bandeiras e t-shirts dos seus apoiantes é um relato autoconfirmatório da transcendentalidade do líder. E assim Bolsonaro está no interior da personificação do Brasil; e acima dele, mas por ele velando, apenas deus se encontra. A nova fórmula “Deus é nós” condensa esta mensagem, confundindo um “nós” colectivo com um plural majestático. Não por acaso os bolsonaristas se apropriaram da bandeira do Brasil como símbolo da sua pertença. Que tem esta a ver com corrupção? Nada de nada. Mas tem tudo a ver com a projecção simbólica do sagrado nacional.

Aos objectos sagrados não os deixamos contaminarem-se. É por isso que qualquer crítica a Bolsonaro, por mais óbvia que pareça, é rechaçada com o ápodo de ladrão colado a Lula. O engraçado que foi ver Cecília Meireles, que está a leste do que se passa no Brasil, fazer a mesma e exacta equação dos bolsonaristas! Mostra bem como este modelo tem adesão cognitiva. Segundo Cecília, no programa linhas vermelhas, Bolsonaro tinha tiques antidemocráticos e teocráticos, mas Lula era ladrão! Não lhe passou pela cabeça que Bolsonaro fosse também ladrão. Eventualmente, se a ele agregarmos a família e os esquemas das “rachadinhas”, bem mais ladrão do que Lula alguma vez foi. Só que a ladroíce de Bolsonaro não vem do “sistema”.

A nova propaganda dos bolsonaristas possui tanto de original como de aterrador. A fórmula que começou a ser lançada com toda a azáfama nas redes sociais são videoclips criticando o “sistema” e Lula com a voz do próprio Lula. Que melhor efeito de dessacralização do que ter o próprio Lula a dizer que é ladrão? Ora estas coisas são muito pensadas; estão longe de ser ocasionais. Depois de se chegar à conclusão de que a voz de Bolsonaro, por sagrada que seja, não é suficientemente eficaz, que melhor mecanismo do que pôr o próprio sujeito da profanação a confessar a mesma? Para a inquisição não bastava que os padres aduzissem a prova e a condenação – era preciso que o condenado se condenasse a si mesmo. Só assim seria absolvido na vida eterna.

É por isso que os populismos fascizantes, como os de Meloni ou de Bolsonaro, têm menos a ver com o poder da retórica do que com o do sagrado. A identificação com o líder é um dos seus grandes trunfos. E nas entidades sagradas, antropomorfizadas de preferência, existe uma identificação essencial que funciona como horizonte de sentido.

A mulher da Barra da Tijuca, onde Bolsonaro morava, a quem perguntaram [num programa da Globo cujo nome não recordo] porque gostava ela de Bolsonaro, não fez menção a nenhuma medida política ou orientação ideológica – disse apenas “porque ele é como eu. Xinga quando é preciso e diz merda sem pedir licença”. Ora aí está um programa político que não necessita do campo semântico da ideologia.

É assim que o facto de Bolsonaro possuir mais de cinquenta casas, todas compradas com dinheiro vivo, não compete com o triplex do Guarujá de Lula. Pela lógica, a conclusão seria inevitável. Mas o bolsonarismo – tal como o melonismo – não se rege pela lógica. Compreende-se por exemplo porque razão existe um fascínio por Meloni entre os tokoistas, os evangélicos seguidores do homem-santo, Simão Toko, cujas raízes africadas irradiaram entretanto para a Europa? A resposta encontra-se na adesão incondicional prestada pelos evangélicos brasileiros a Bolsonaro. Ambos possuem comportamento de seita; ambos se regem pela crendice e pelo dogma perante o comportamento dos líderes; ambos santificam a sua figura tutelar.

Aliás, não há qualquer outra razão para além do próprio comportamento de seita. Ou seja, não há qualquer qualidade nas respectivas figuras tutelares que as crismasse com o carisma dos grandes orientadores de povos. No caso de Bolsonaro isso é gritante. Foi expulso do exército por colocar uma bomba num dormitório; foi dos deputados federais mais improdutivos da história da república brasileira; e é quando muito medíocre como orador. Conclusão: nem figura de prestígio militar, nem político e menos ainda grande orador. A adoração só pode resultar do próprio comportamento de seita dos seus apaniguados. Quando festejam o seu líder, festejam-se a eles mesmos, ao facto de pertencerem a uma seita.

Contrariamente à caracterização que nos foi legada por Troeltsch, as seitas actuais não são de pequena dimensão. São extensas, com ramificações internacionais. Porém, uma das características apontadas pelo teólogo é de interesse para esta discussão. Segundo Troeltsch, as seitas colocam-se eticamente fora da sociedade política organizada, vendo-a como corrupta, ou retirando-se dela ou procurando transformar a ordem social. Não há muito de ético no comportamento dos bolsonaristas, mas a forma de pensar a sociedade enquanto uma exterioridade corrupta possui inegáveis afinidades com a constituição de uma seita. O facto de, ainda segundo Troeltsch (e Weber, claro), a separação entre crentes e não crentes ser mais radical do que no caso de outras formações religiosas.

Ora, encontramos qualquer uma destas características nos movimentos políticos aqui referidos. Em especial no bolsonarismo, a hostilidade a quem não partilha a crença no carisma do líder é expressa pela rejeição pura e simples. Na medida em que o espaço simbólico de afectação da crença é o próprio Brasil, ele funciona como o território espiritual reinvindicado e protegido da contaminação.

Mas e os petistas, quando desdenham Bolsonaro e a sua prole, não organizam o seu protesto consoante a mesma lógica? Não. Os petistas elevam a discussão para além do binómio puro/impuro. E por esse facto, centram-na na organização política e económica da sociedade brasileira. Como consideram que este é o campo semântico onde a discussão deve ser colocada, reivindicam uma ideia de Brasil enquanto entidade política, e não enquanto uma mega-igreja.

Tropicália faróeste

foto retirada daqui

O espectáculo degradante dos debates televisivos no Brasil atingiu o seu paroxismo nestas eleições presidenciais. Nunca antes tinha visto um indivíduo que dá pelo nome de padre Kelmon, que se apresenta como candidato de um partido, supostamente, concorrente do de Bolsonaro, passar todo o tempo a fazer propaganda a este último. Razão teve Lula ao invectivar o padre perguntando-lhe se ele era de facto padre ou estava disfarçado. Sem surpresas, o moderador pediu desculpa aos espectadores pela picardia que entretanto se desenvolveu entre Lula e o padre Kelmon, quando na realidade deveria ter pedido desculpa pela presença de tão sinistro personagem como o padre.

O problema brasileiro, ou seja, o problema das injecções ideológicas e propagandísticas tem o seu fundo na comunicação social. Ganhar um partido de esquerda num país como o Brasil, em que a comunicação social é tão evidentemente facciosa é um feito nada despiciendo. Como dizia um bolsonarista entrevistado na rádio e a residir no Porto, os que trabalham querem o pulso do Bolsonaro, e o povo pobre quer o Lula porque ele promete coisas. Assim se resume a visão política de um comerciante de classe média do Porto apoiante de Bolsonaro. Não passará despercebido o facto de a oposição ser traçada entre “quem trabalha” e o “povo pobre”, admitindo-se, por conseguinte, que o segundo nada faz. Muito deste espírito esteve presente na vitória de Bolsonaro, e muito dele foi carreado pelo protofascismo envergonhado de uma classe média brasileira que tem pânico de cair na pobreza.

É difícil não imaginar que a ideia fascista do pulso forte não seja uma necessidade cultural quando diariamente as televisões como a Record ou a Bandeirante vomitam banditismo e criminalidade. À imagem dos Estados Unidos, o medo é algo reproduzido ideologicamente pela saturação da ideia de presença de perigo. Os bolsonaristas vivem com um pânico permanente da insegurança e quando interrogados se o porte livre de arma não leva a uma guerra de todos contra todos, a resposta é singularmente inteligente: sim, mas pelo menos eu tenho oportunidade de matar o bandido.

Bolsonaro orquestrou este pânico da classe média como ninguém. Por isso, gente aparentemente inteligente e com habilitações lhe presta homenagem. A rede de perigosidades com que o brasileiro se vê assolado começa na pequena criminalidade e acaba na alta corrupção. Visto assim, a única solução possível é o “pulso forte”. Donde Bolsonaro não ter discutido nada do que antevê para o seu governo e apenas ter insistido que o seu opositor era um criminoso ex-presidiário. Que Bolsonaro apoie criminosos como os generais da ditadura e os esquadrões de milícias actuais que recebem o beneplácito da belicosidade dos seus filhos, nada disso tem importância. Onde há “deus acima de todos” as questões terrenas são dirimidas à lei da bala.

Simone Tebet terá alguma razão quando vê nesta picardia entre Bolsonaro e Lula um fait-divers para omitir os problemas da pobreza no Brasil. E Ciro, com a inteligência mecânica da esquerda bem postada na mesa dos ricos, acusou Lula da riqueza ter crescido durante o seu governo. As traições da esquerda à própria esquerda, como bem sabemos por cá, também se lavam com sangue. Só que Ciro, sendo um homem inteligente, sabe que o problema da desigualdade brasileira está bem para além do governo Lula. E não ter feito a mesma acusação a Bolsonaro, mostra que o revanchismo esquerdista ataca sempre o centro desabrigando assim o flanco para a direita crescer. Ciro devia assistir a mais jogos de futebol para perceber o que está errado na sua estratégia.

E o problema da pobreza no Brasil? Segundo as candidatas liberais, tais como Simone Tebet e Soraya Thronike, a coisa só lá vai com redução de impostos. Um truque parecido com o de Liz Truss que impõe uma drástica redução de carga fiscal e aumenta o financiamento das despesas públicas contraindo empréstimos. É claro que os mercados responderam com aquilo que melhor sabem fazer: a sanidade do concreto. No Brasil, não consigo imaginar que a pobreza se debele através de uma descida da carga fiscal. Quando a desigualdade é obscena, quando os ricos são de facto muito ricos, e não apenas riquinhos, falar em descer impostos é insultuoso. Mas quanto a isso Bolsonaro não se opõem. O Brasil dos ricos fornece os instrumentos para a cavalgada bolsonarista, e daí se deve dar em troca uma ajudinha divina.

E Lula? O ex-presidente está velho. Não é mais o Lula de 2010. A prisão não lhe fez bem. A voz, de tantos comícios e ajuntamentos, está sumida e roufenha. Mas tal como aconteceu com Biden, o que os brasileiros não perdoam a Bolsonaro, foi a gestão da pandemia. Por isso os ataques ad hominem são sobretudo por aspectos laterais à condução política do país.

O fenómeno é bem preparado. Tão bem preparado que começa a haver uma cartilha. Também Bolsonaro vai apelar para a ideia de fraude eleitoral caso Lula ganhe na primeira volta. E bem podem os americanos repudiar esta tática – que curiosamente foram eles que elevaram à sua sublimidade – que para o brasil é indiferente. Os amigos de Bolsonaro não se encontram mais nos Estados Unidos, mas sim na China e na Rússia e nos países árabes. Não são norte-americanos que compram triplexes de milhões na beira das praias de Santa Cartarina, mas sim russos e árabes. O Brasil não é mais o quintal tropical que fazia as delícias das fantasias norte-americanas. O seu principal parceiro comercial é a China. E a China, como sempre, nada diz.

Desconcerto social

Cargador de Flores (Diego Rivera) daqui

Há um problema bem português que roça a vergonha. Refiro-me ao subemprego. A este associa-se a subempregabilidade, palavra espinhosa para significar que há gente a menos para comportar as tarefas presentes numa dada organização. Por isso, ouvir um dos responsáveis pela associação de turismo dizer que, em virtude da falta de mão-de-obra, deveríamos considerar a hipótese de ir buscar trabalhadores aos PALOP, tem um travo amargo de nova escravatura e, simultaneamente, de desrespeito pelos escravos de serviço.

A face mais visível desta subempregabilidade encontra-se na restauração. O sector do turismo é pródigo no fenómeno. E talvez aí resida, em parte pelo menos, o enigma dos salários baixos praticados em Portugal. Não creio que exista uma correlação directa entre produtividade e salários; e a existir, de certeza possui esta variações bem acentuadas quando observada sectorialmente. Se a produtividade do sector turismo servisse de diapasão para os ordenados aí praticados, então a relação teria que necessariamente ser a inversa. Com o boom turístico que Portugal vive, interrompido apenas pelos anos pandémicos, os ordenados deveriam ser muitíssimo apetecíveis. No entanto, verifica-se o contrário.

É certo que Augusto Mateus veio repetir o default economicista que reza que a produtividade só cresce quando o capital humano crescer, e nesse sentido a sua proposta é a digitalização dos serviços e outras quejandas. Tratando-se do sector do turismo, perguntamo-nos o que tem o cu a ver com as calças? Sobretudo quando este encaixou 22 mil milhões de euros de receitas (mais do que a bazuca europeia para Portugal) e se serve abundantemente de mão de obra não qualificada, ou, pior, de mão de obra altamente qualificada em actividades cujas necessidades de qualificação são meramente experienciais. Aqui a culpa dos salários obscenamente baixos com condições de trabalho indignas não é com certeza da falta de digitalização!

Mas restrinjamo-nos à restauração. O truque em que patrões são useiros e vezeiros está nos horários intercalados. A lógica é a seguinte: como os fluxos de trabalho sofrem grandes variações, e no seu ponto baixo são necessárias apenas duas ou três pessoas, então apenas pago ao total dos empregados as horas de trabalho necessárias para acorrer aos fluxos mais intensos. Temos assim a situação de trabalhadores que ficam parados quatro e cinco horas entre turnos de trabalho, apenas porque assim tornam-se mais económicos para o patrão. Esta situação é recorrente. Quando o cálculo não corresponde ao acontecimento, assistimos a trabalhadores com a língua até ao chão a tentar despachar o trabalho de dez sendo apenas três. Vê-se nos restaurantes, nos cafés, nos centros comerciais, etc.

Para além disto comportar uma total falta de respeito pelos ritmos de trabalho do trabalhador, sonega-lhe parte do ordenado que este deveria auferir, porque os contratos assim o permitem. Imagine-se que só se pagava aos empregados das empresas o tempo de trabalho realmente efectuado, descontando-se as horas em que o fluxo de trabalho fosse inferior, por exemplo, à média, no pressuposto que menos trabalhadores seriam necessários para executarem o trabalho necessário. Os ordenados viriam por aí abaixo. Mas é possível fazê-lo na restauração. Muito embora devesse ser considerado ilegal e atentador do direito dos trabalhadores.

O outro aspecto notório decorre destes sectores primarem pela rotatividade. E esta possui duas dimensões. A rotatividade do horário de trabalho, que tem o seu paroxismo no trabalho intercalado, como referido; e a rotatividade do próprio trabalho, com contratos de períodos mínimos, e índices de substituibilidade muito significativos. Esta última não apenas ocorre ao sabor da sazonalidade das actividades, como também decorrente dos cálculos mais imediatos das margens de lucro. Ou seja, observando eu enquanto patrão uma queda nas actividades, basta-me colocar mais trabalhadores em regime intercalado.

Esta situação, ou condição laboral, implica aquela ideia tortuosa que por aí se vê cuspida segundo a qual “há trabalho, não há é gente para trabalhar”. A subsistência deste sistema de compressão salarial tem sido sustentada pelo trabalha dos imigrantes. Não admira, por isso, que encontremos brasileiros a trabalhar na restauração e indústria do turismo de norte a sul do país. É óbvio que a mais recente imigração brasileira é extremamente variada no tocante a perfis profissionais e modelos de inserção laboral. Contudo, uma porção muito significativa continua a preencher os lugares mais precários e menos apetecíveis do mercado de trabalho. Existem razões racionais para isto que não se prendem exclusivamente com a necessidade de sobreviver. Entre elas, a variação cambial entre Portugal e Brasil permite que, mesmo um emprego mal pago e precário no primeiro, providencie um rendimento significativo no segundo. Esta diferença é, geralmente, uma motivação importante nos processos migratórios; motivação essa que tende a esbater-se com as aproximações monetárias. Temos assim uma das razões fortes pelas quais tantos trabalhadores brasileiros, em contraste com os nacionais, aceitam trabalhar nas condições aqui descritas.

Independentemente das motivações subjacentes à persistência do modelo, ele é um cancro para imigrantes e nacionais. Sobretudo porque quando falamos de precaridade temos que lembrar que esta gera sempre vários níveis de precarização – à precarização laboral associa-se a precarização familiar à qual se pode associar a precarização psíquica, etc. Este etc significa também que os níveis de precarização se reforçam uns aos outros tendendo estes a estruturar vidas e opções.  

Dizem os empresários que só baixando a carga fiscal é que as empresas do sector sobrevivem. No entanto, a política de continuação da relação precaridade-baixos salários não possui o equivalente na renda recolhida pelo Estado; ou seja, existindo um trade-off entre aquilo que os empresários estão dispostos a pagar e a taxação das suas actividades, não se verifica que quando se reduz a última, a primeira sofra um incremento. Porquê? Porque os rendimentos dos mais ricos, como tem sido apontado por diversos autores, aumentam à custa do factor trabalho. Como pode ser verificado por países como o Brasil ou os Estados Unidos, as políticas de governos conservadores como o de Bolsonaro ou Trump, apesar de uma redução acentuada da carga fiscal não obtiveram a correspondente subida salarial. Por isso, esta é uma falsa questão.

É tempo de colocarmos os empresários perante o facto objectivo de que trabalhadores sufocados pelo custo de vida e pelo trabalho não são, nem podem ser, trabalhadores motivados. Se a lógica for, o quanto pior, melhor, então podemos sempre fazer dumping social até chegarmos aos famintos do Sudão que aceitarão qualquer coisa por um naco de pão. O curioso é que estando estes dispostos a fazer o que for preciso para sobreviver, e por isso emigram em catadupa, os empresários sejam avessos à sua entrada, desde logo porque esperam sempre ter psicólogas e jornalistas brasileiras a atender ao balcão.   

Três ideias (mal) feitas sobre a guerra na Ucrânia

imagem retirada daqui

São várias as boutades sobre a guerra da Ucrânia repetidas por jornalistas e comentadores que diariamente nos brindam com as suas sábias palavras nos nossos écrans e rádios.

A primeira é a do isolamento da Rússia e, por associação, de Putin. Nem uma nem outra são verdade, muito embora isso faça parte das narrativas do ocidente. Quanto ao isolamento da Rússia ele é desmentido com o apoio de grandes potências como a Índia, a China e, em certa medida a Turquia, para nos concentrarmos no eixo belicista; mas também dos países árabes, que não emitiram nenhuma condenação sonante a Putin e, pelo contrário, abriram as portas para os oligarcas seus apoiantes. Se a estes somarmos o Brasil de Bolsonaro (mas será o de Lula diferente?), o Irão e tantos países africanos, como Angola ou o Congo – lembrar que 9 opuseram-se à resolução de condenação da UN e 35 abstiveram-se -, então temos que praticamente metade do mundo está do lado da Rússia. Algo estranho para isolamento, não? Se alguma coisa, o mundo encontra-se actualmente partido ao meio e, mesmo que numa geometria bastante livre, nunca o corte entre ocidente e oriente se afigurou tão vincado.

E quanto a Putin? Macron atribui ao isolamento causado pelo covid as atitudes, para ele, inusitadas de Putin. Mas qual isolamento? Cada ação crucial de Putin foi precedida de um encontro com Xi. Da primeira vez, sem dúvida para se certificar que teria o apoio da China para anexar a Ucrânia – e teve-o. Agora, para acelerar o ritmo da guerra através dos referendos, volta a encontrar-se com Xi e tudo leva a crer que o fará com a caução do mesmo. So much para isolamento.

Caso Putin, ou a Rússia, tivessem verdadeiramente isolados não teriam tido a recepção que tiveram na cimeira da euro-ásia em Baku. Aquilo a que assistimos não foi uma Rússia isolada, ou um Putin acossado; foi sim, uma Rússia a estender os seus recursos e redes para a China e a Índia. E estas a fazerem contas de que como ficarão cada vez mais independentes do ocidente – leia-se, dos Estados Unidos e da Europa.   

Por isso, a outra boutade, repetida até à saciedade por comentadores e jornalistas, é a de que a China só pensa nela própria. A China não pensa apenas nela própria, porque se o fizesse não colocava elementos perturbadores nas relações com os Estados Unidos, até hoje, o seu maior parceiro comercial. A China pensa na zona asiática e no seu projecto de hegemonia mundial cujo líder será com certeza chinês. Neste momento, e porque as condições geopolíticas se encontram de feição, é mais valiosa essa aposta do que garantir que as relações comerciais prossigam sem sobressaltos. A criação de uma zona com quase metade da população mundial e um exército convencional equivalente tem o potencial de se tornar o actor hegemónico para este século.

E chegamos à derrota estrondosa da Rússia na guerra com a Ucrânia. Essa parece ser a retórica mais delirante. É certo que a Rússia tem encontrado dificuldades em fixar as suas tropas no território ucraniano. Também é certo, como dizem, que o objectivo de tomar Kiev numa Blitzkrieg falhou. Mas se o objectivo era inutilizar um contendor económico e político na sua zona de influência, então o sucesso é total. Porque a Ucrânia, apesar de estar a recuperar território, tem a sua economia destruída; tem uma geração de jovens perdida; e tem a sua integridade ameaçada para os tempos mais próximos. Ou seja, se o objectivo da guerra era anular a Ucrânia, então está a surtir efeito. Onde ver então desespero nas mensagens de apelo ao nuclear que Putin deixou ao mundo?

A propósito do nuclear, vejo a China a jogar um papel simétrico ao que jogou na crise dos mísseis de Cuba em 1962. Aí, colocou-se ao lado dos cubanos e da linha mais dura soviética, contra Khrushchev e aquilo que Mao percebia ser a sua atitude capituladora. Com efeito, interessava a Mao intensificar o conflito em Cuba porque ele sabia que isso iria enfraquecer os Estados Unidos e que tal seria essencial para as suas pretensões relativamente a Taiwan. Para Mao era óbvio que os Estados Unidos não poderiam estar envolvidos em dois conflitos de alta intensidade simultaneamente. Passa-se algo semelhante na actual situação internacional, só que desta feita os actores mudaram as alianças. Xi precisa de intensificar as tensões entre Rússia e Estados Unidos para relançar a hipótese “anexação de Taiwan”. E se em 62 a desistência de Khrushchev provocou um cisma entre União Soviética e China e, mais ainda, dentro do próprio internacionalismo comunista, agora o cisma é entre China e Estados Unidos. Como compreender de outra forma a pacificidade com que Xi tem recebido a ameaça do nuclear reiterada por Putin em diversas fases desta guerra?  

Onde há fumo há fogo

imagem retirada daqui

A teoria começa a fazer o seu caminho. Diz ela que por detrás desta maré de fogos que todos os anos consome a nossa floresta estão os bombeiros. E a razão, sendo cínica, é bastante racional. Na medida em que os bombeiros são pagos pouco acima do ordenado mínimo, é racional, individualmente, que se aumente o salário recorrendo às horas de combate a incêndios. É o eterno problema português: não é as diferenças entre categorias – é dentro das mesmas categorias. Assim, chega-se ao ridículo de haver bombeiros profissionais que ganham mais de 2500 euros, segundo tabela da função pública, e voluntários a ganharem 2,5 euros por hora. O fenómeno é comparável com a situação de disparidade entre médicos do público e do privado. O problema – e é aqui que entra a teoria semi-conspiratória – está no facto, inteiramente racional também, segundo o qual para aumentar o meu pecúlio tenho que aumentar as horas de combate ao fogo, sendo bombeiro voluntário, o que equivale à maioria dos bombeiros. Mas para isso é preciso que ele, o fogo, exista. Estes comportamentos são racionais; o resultado, contudo, é completamente irracional.

Estamos perante uma situação catch 22. Dentro desta lógica torna-se previsível que termos mais bombeiros equivalha a mais fogos. Porque não podemos deixar de nos interrogarmos quando assistimos ao festival de petulância inconsequente nas declarações de responsáveis pelas forças de segurança, bombeiros incluídos. Com que cinismo a liga dos bombeiros veio felicitar a execução de uma auditoria independente para logo de seguida duvidar da sua independência? E quem assistisse ao comandante da polícia judiciária a ser entrevistado na televisão com uma verborreia oca e indeterminada, que nem sequer conseguiu dizer se havia ou não mais fogo posto, teria todas as razões para desconfiar das boas intenções! Mas depois aparece um presidente de junta a dizer que qualquer dia as populações lincham alguém. Supõe-se então que esse alguém deve corresponder a entidade concreta e, portanto, é um alguém que alguém até conhece. Será que algum dia chegaremos à resolução do enigma? Ou estaremos condenados, ano após ano, a ver o país arder deixando para memória futura morros carecas e aldeias despovoadas?

A irracionalidade do processo reside no facto comprovável da irreversibilidade da destruição. Sendo certo que a natureza possui uma capacidade insólita de se regenerar, tornou-se também evidente que as estruturas turísticas ou suas coadjuvantes, quando o motivo pelo qual foram erguidas se esvai em cinzas, não sobrevivem a hiatos temporais alargados. Hectares calcinados não atraem multidões; e até que uma leve penugem verde comece a atapetar montes e vales passam anos cuja conta corrente deixa de ser sustentável. As estruturas – e com elas as pessoas – que sobreviviam porque os lugares além da tipicidade exibiam uma natureza luxuriante acabam por definhar.

Por esse facto, o escândalo dos incêndios devia concitar um debate nacional bem para além das banalidades, umas mais técnicas outras mais prosaicas, que são despejadas por responsáveis e participantes. Num país onde o crime tem formas de repercutir nos media como num aparelho de amplificação, fala-se muito pouco dos culpados e das motivações do fogo posto. Não se conhecem as penas, quando qualquer caso que envolva político ou figura pública rapidamente encontra vazão nas páginas dos pasquins mais amarelos. Porque nunca há alarido em torno das penas dos pirómanos? Quem são eles? E quando são bombeiros – que os há, e não são assim tão poucos – que motivações subjaceram aos seus actos?

Portugal – imaginemo-lo como uma entidade psíquica – fala mais através dos seus silêncios do que por aquilo que é dito. Devemos habituar-nos a ler o que realmente interessa nos silêncios, e silenciar a ocupação palavrosa do espaço público. E esses são muitos; e como forma de desimplicação das responsabilidades devidas são muito eficazes.

Escrevi em post anterior que a culpa dos incêndios encontrava-se na negligência das pessoas. Parece, contudo, que esta afirmação deve ser revista. Porque quando no rescaldo de um mega-incêndio na Serra da Estrela logo outro começa em Tomar – no dia imediatamente a seguir para ser preciso – é difícil acreditar na fortuitidade dos acontecimentos. Incêndios sequenciais resultam certamente de mão humana. A causalidade da negligência rege-se mais pela contingência do que pela necessidade sequencial. Por isso, parece demasiado a propósito que quando o incêndio da serra da estrela se dava por controlado outro fosse posto a lavrar umas centenas de quilómetros abaixo. Pode até existir um padrão nos incêndios, o que este não pode é ser sequencial. Por azar, o primeiro incêndio estava longe de se encontrar controlado, por isso ainda hoje (caminhando para o 13 dia) lavra na serra. Mas a sequencialidade das ocorrências implica logicamente a intencionalidade humana.      

Bandidos

Email com pedido de contratação externa para o Centro Hospitalar do Oeste

Por que razão atribuímos intenções deliberadamente políticas a actores individuais e não o fazemos quando se trata de colectivos ou representantes dos mesmos? No caso dos segundos, assumimos que a defesa das suas petições seja legítima e enquadrada na prossecução de um direito ou oportunidade que lhes deveria assistir independentemente de uma qualquer posição política, declarada ou não.

Contudo, as representações colectivas dificilmente agem num campo neutro, apenas orquestrado pela natureza das suas reivindicações e pelos argumentos apresentados num espaço representacional de direitos abstractos. Pelo contrário, estes colectivos são frequentemente orientados segundo linhas políticas bem delineadas e identificadas com determinados quadrantes e as suas lutas conjunturais. A este propósito, a actual luta dos polícias e dos médicos, é inseparável duma estratégia de direita que instiga as actuações de representantes principais – os porta-vozes -, mas também dos corpos colegiais, a agir numa determinada direcção. Há as lutas da esquerda, das quais a dos professores é emblemática. Mas há também as lutas da direita.

Por razões históricas, habituámo-nos a ver as lutas colectivas como um património da esquerda. E sabemos apontar responsáveis associando as suas ações a posturas políticas definidas. Com a direita, temos maior dificuldade. Não apenas porque ela se escusa a representar-se colectivamente – salvo no resultado do sufrágio -, como os seus porta-vozes são mais estratégicos e tendem a não se identificar com a sua origem política. A razão parece relativamente óbvia: enquanto a esquerda, ideologicamente, tem uma noção da sociedade enquanto colectivos actuantes na história – cuja formulação “luta de classes” é a mais evidente – a direita, ideologicamente, concebe-se como encontro e desencontro de vontades individuais. É claro que no caso vertente de médicos e polícias, a representação é a de um corpo profissional. Mas se atentarmos nas suas reivindicações, percebemos que são, antes de mais, de natureza individual.

Dos médicos, bastava ter visto a participação do sr. Bastonário num debate televisivo recente, para perceber quais as verdadeiras razões que se encontram subjacentes à tomada de posições enquanto corpo. Percebeu-se, se já não era evidente, que os médicos pretendem a equiparação de remunerações entre os dois sistemas de saúde – o público e o privado. E observe-se a fotografia de uma contratação externa para uma substituição, que encima este post, para perceber que o montante pedido é o equivalente ao preço de uma consulta no privado. Dir-me-ão: mas faz todo o sentido, porque se trata de pagar o mesmo serviço. Por essa ordem de ideias, todos os funcionários públicos exigiriam equiparações do mesmo calibre – engenheiros, arquitectos, advogados, etc, etc.

Há razões pelas quais o Estado – salvo excepções – não paga tais ordenados. Primeiro, porque se o fizesse ia à falência. Porém, e mais relevante, é que a lógica do serviço público não pode ser utilitária, sob pena de deixar de ser público. A luta dos médicos não é por um melhor sistema público de saúde; é pela equiparação às condições do mercado. Caso em que um corpo profissional público força o sistema a uma transformação endógena no sentido da sua mercadorização. Independentemente da retórica dos seus representantes acentuar que o objectivo último da luta dos médicos é a sobrevivência e qualificação do serviço nacional de saúde, as suas reivindicações não apontam nessa direcção. Após diversas reuniões com o Estado, tornou-se claro que a tabela salarial é o que está verdadeiramente em jogo.

No domínio das lutas pelo poder negocial e pela posição mais privilegiada que permita fazer valer uma espécie de chantagem, sem dúvida que as condições de experiência da profissão médica e o campo de ambiguidades que se instalou com a promiscuidade entre público e privado, raramente são chamadas à colação. No entanto, é legítimo imaginarmos que como resultado da transumância absoluta entre público e privado – da qual, os utentes, são inteiros conhecedores, embora o Estado ou as corporações não forneçam qualquer indicação – as rivalidades e invejas profissionais se intensifiquem. É certo, são termos comezinhos, até torpes. Mas os médicos, apesar da sua representação pública de agentes sobre-humanos, são bem humanos. E aqui há também uma razão para esta falta de transparência; para a inexistência de um levantamento das participações no público e no privado de cada médico que trabalhe nos dois sistemas. Porque a exclusividade é a última coisa que os médicos querem. Dir-se-ia, contudo, que uma preocupação pela qualidade do SNS implicaria uma vontade de criar condições para dedicação plena. Só que estas apenas serão aceites quando não houver nenhuma distinção entre o que se oferece no público e no privado – uma impossibilidade prática, como sublinhado acima.  

O caso das polícias é distinto. As polícias são coordenadas por forças da direita, e mais recentemente, da extrema-direita, com uma implantação do partido Chega entre as suas forças muito significativa. É no mínimo curioso que logo após a conquista da maioria absoluta por parte do PS, as polícias retornem à ofensiva contra o Estado. Tão curioso quanto constatar que existe uma coincidência entre estes protestos da polícia e as exigências declaradas pelos dois autarcas representantes de forças da direita de Lisboa e Porto.

É quase anedótico as queixas de falta de pessoal e o fecho de esquadras pela impossibilidade de assegurar o seu normal funcionamento, quando a PSP é o corpo profissional que mais sindicatos tem a nível nacional. Conta com 17 sindicatos! Segundo uma notícia do DN de 2018, quando ainda existiam apenas 16 sindicatos, estes contavam com 3680 dirigentes e delegados, o que equivalia a 36 mil dias de folga anuais.

Nada tenho contra a liberdade sindical, aliás conseguida à custa de um dos acontecimentos mais penosos da história recente da democracia portuguesa, um episódio conhecido pelos “secos e molhados”. Mas esta estratégia não é claramente no sentido da defesa de interesses colectivos. Para isso, um sindicato bastaria. Ora, tendo em conta que a PSP possui aproximadamente 21.000 efectivos (dados da pordata para 2020), temos que quase 18% da sua força de trabalho pertence a um quadro sindical. Não admira que seja difícil completar escalas, e que um representante sindical dissesse, ainda hoje de manhã, que era complicado conciliar com as folgas.

Quer para os médicos quer para as polícias, porque razão estas situações não são denunciadas? Porque o poder político tem medo de afrontar estas duas corporações. A matriz do poder social (como lhe chamou em tempos Offe) é bem mais complexa do que a vox populi julga. Para o comentário leigo, o Estado, e sobretudo o governo, é um Moloch ao qual ninguém se opõe. Mas existem grupos de pressão que têm força para derrubar governos; e quando existe coincidência entre a ação dos primeiros e agendas políticas determinadas, então o uso do seu protesto torna-se instrumental. Basta ver como os sindicatos arregimentados pelo PCP foram pacificados durante o período da geringonça, para agora serem incitados novamente ao protesto. Objectivamente, há uma grande diferença nas condições sociais e económicas dos grupos que estes representam entre os dois períodos governamentais? Nenhuma. O protesto é instrumentalizado para servir uma agenda política. E nesta conjuntura, ela tem uma leitura concreta: a da reconfiguração da direita.

O Sousa Martins da nação

foto do Dr. Sousa Martins (retirada daqui)

Podemos sempre contar com Miguel Sousa Tavares para ser o vate da cura e salvação nacionais. Para MST está tudo mal no Estado e o atraso do país deve-se, em absoluto, às estruturas degradadas e desorganizadas do mesmo. MST tem inteligência de sobra para tecer críticas e propor soluções, ao contrário dos caceteiros de serviço nas redes sociais. Mas é aqui também que MST geralmente revela a sua profunda insensibilidade. Duas das últimas sugestões para aumentar a governabilidade do país são suficientemente ilustrativas.

A primeira prende-se com o sistema de segurança social. Na opinião de MST quem tivesse mais filhos deveria ser recompensado na idade da reforma, porque gerou força de trabalho que, a prazo, sustentará as reformas da geração anterior. Uma visão que dir-se-ia pré-malthusiana. Mas que, segundo MST, resolveria o problema da baixa natalidade e criaria uma maior justiça redistributiva. A premissa, como é óbvio, encontra-se no facto, não mencionado, que as pessoas não fazem filhos por razões estritamente egoístas. Para MST fazer filhos é algo que decorre da santidade da decisão individual e que não sofre qualquer constrangimento externo.

Se atentarmos nas famílias numerosas verificamos que elas encontram-se nos dois extremos da distribuição da riqueza. De um lado, os muito pobres, que fazem filhos orientando-se pelo princípio de incremento da força de trabalho no seio familiar; do outro, os muito ricos, que fazem filhos porque os podem sustentar e querem garantir a passagem do património no seio da família. No meio ficam a maior parte das pessoas, que não têm muitas vezes como sustentar os filhos, nem querem reproduzir força de trabalho, para depois não lhe assegurar as condições mínimas. Por que razão esta larga fatia da população pensa assim? Bom, porque as condições que assegurariam a sustentação da sua prole estão longe de estar garantidas. Mas este princípio de incerteza não existiu sempre, de uma maneira ou de outra?

Dois fantasmas são particularmente preocupantes hoje em dia. Por um lado, o desemprego, e, sobretudo, o desemprego de longa duração. Mas este é o mais conhecido e debatido. Há, contudo, um desemprego latente que as estatísticas do IEFP não sinalizam e que é aquele que se atém à impossibilidade de determinar se no futuro o emprego estará assegurado. Eu creio que o desemprego deveria ser aferido com base nesse critério. Que sentido faz actualmente medirmos o desemprego segundo o critério da população activa se uma fracção desta corre o risco de estar desempregada no ano seguinte? Que peso possui uma tal condição nos projectos dos indivíduos e das famílias? Como podem estes traçar planos a médio e longo prazo se a incerteza não é governável? Por isso, existe um desemprego nominal e depois, não menos importante, um desemprego latente. Ambos são profundamente coarctadores das opções de futuro; entre elas, a decisão de ter filhos.

O segundo fantasma prende-se com a habitabilidade. Ter filhos, implica o aumento do espaço habitável dos agregados. Dantes, nas condições de família alargada, construía-se um anexo junto à casa patriarcal e aí se fundava uma nova família. Agora, os anexos são as próprias casas onde as pessoas habitam. E salvo excepções, como MST, que habita num quase palacete em Campo de Ourique (ou habitava) a maioria das famílias tem que deitar contas à vida para fechar a equação sustento de uma habitação em função do espaço de habitabilidade. É claro que há famílias, como uns antigos vizinhos meus, que até nas varandas fechadas fazem quartos para os filhos. Não creio que isto seja uma ideia genial em termos de qualidade de crescimento para uma criança. Mas enfim, cada metro quadrado a mais pesa nas decisões do agregado em aumentar a sua prole.

Finalmente, como Portugal é um país pobre – ou um país onde a riqueza se encontra tremendamente mal distribuída – os apoios à infância são ridículos quando comparados com países como a Áustria ou a Alemanha. Tem razão MST que creches gratuitas não resolvem o problema da natalidade. Este problema, em Portugal, deve ser sempre equacionado tendo em conta os projectos das famílias e a insegurança laboral. Por isso, na Áustria, a forma de resolver a baixa tx de natalidade foi dar aos pais a possibilidade de permanecerem com os filhos em casa nos seus dois primeiros anos de vida. Com o Estado a assegurar 80% dos ordenados e as empresas a garantirem os lugares à mulheres que se encontram em Karenz (nome dado à licença de maternidade-paternidade). Compare-se com os seis meses legais que são concedidos em Portugal.

É claro que o argumento pode ser distorcido dizendo que no Uganda, apesar da pobreza, as txs de natalidade rondam os 45%. E é também verdade que enquanto a mortalidade infantil em Portugal é de 3/1000 no Uganda é 64/1000. Altas taxas de natalidade são, como sabem os neomalthusianos, sinónimo de subdesenvolvimento.

A outra sugestão para aumentar a governabilidade do país é igualmente demonstrativa de uma insensibilidade coriácea. Aliás, ele é um dos velhos temas da direita nacional, tão ao gosto do passismo, por exemplo, mas já o cavaquismo possuía toda a grandeza deste pensamento. O grande problema do país é o absentismo no Estado. Para MST, também aqui, se devia premiar aqueles que menos faltam no Estado.

O maior problema do Estado, a meu ver, é aqueles que não faltando, não produzem nada. Ou então, existem apenas como forma de duplicar serviços. Eles existem aos milhares nos mais diversos institutos públicos. Paralelamente, onde são necessários mais funcionários, é onde eles mais escasseiam. Não tenho dúvidas que há um absentismo inteiramente injustificado. Empregados que não estão nos seus postos porque estão a fazer ganchos noutros lados; médicos que saltam como gafanhotos dos hospitais públicos para os privados, e isto diariamente; juízes que faltam para trabalharem em conselhos de administração ou dar aulas em universidades; e por aí vai. Mas estes, paradoxalmente, são os que não faltam. Ou seja, são aqueles cujas faltas são camufladas por esquemas e manigâncias manejados por quem, justamente, comanda os sistemas de registo de assiduidade. Os desgraçados que faltam porque não podem trabalhar, esses são os que, segundo o plano de vigilância e punição de MST, deveriam ser penalizados. Os doentes – que na concepção de MST ou estão com um cancro terminal ou estão a fingir – inclusivamente com doenças do foro psíquico, esses são aqueles sobre os quais recai o estigma da falta de assiduidade. Mesmo que a sua condição seja impeditiva de realizar um trabalho consequente.

Se atentarmos bem, esta conversa da punição regressa sempre que a direita se reorganiza. E ela está em processo de fazer isso mesmo, em direção ao seu grande retorno nacional. O problema da ingovernabilidade de Portugal? Começa pelas elites, que tal como MST vivem de prebendas e privilégios e para os segurarem acham sempre que a cura se encontra na punição dos outros. Pensamento propriamente aristocrático que acompanha Portugal e a sua cena política desde tempos imemoriais. E por aqui também se vê o que começa a emergir no horizonte.   

Burn mother fucker burn! 

foto retirada daqui

Uma amiga fez-me notar que nos últimos dois anos de pandemia não houve fogos. Houve incêndios, claro: uma fábrica que ardeu aqui, um armazém que ardeu acolá, uma queimada que se estendeu para o quintal do vizinho, prontamente debelada. Mas fogos? Não houve. Aquela coisa que devasta milhares de hectares de floresta, incinera casas e animais, e chega mesmo a matar pessoas, não existiu nos anos da pandemia. Porquê?

A resposta climatológica assevera que é isso mesmo: uma questão de clima. E dá-se nomes engraçados à tragédia, como a tempestade perfeita, parecendo esta saída de um filme de espionagem passado durante a guerra fria (a primeira, bem entendido). Sendo certo que não houve calor assim, nem a combinação assassina que todos os meteorologistas apontam como sendo o calor extremo com ventos fortes, houve, contudo, calor. Houve sol e houve calor. Houve dias de 37 e 38 graus. E houve vento, é óbvio. Mas não houve “os fogos”. Qualifique-se o que entendo por fogos. Só em 5 dias arderam este ano mais de 60 mil hectares de terreno; no total do ano passado, arderam quase 26 mil hectares. Menos de metade do que ardeu em 5 dias. É caso para espanto, não?

Uma das diferenças fundamentais entre os dois anos em apreço encontramo-la na restrição das viagens; tanto viagens externas como internas. O país não recebeu os magotes de emigrantes que costumava antes da pandemia, e, da mesma forma, recebeu bem menos turistas estrangeiros. Significa que as actividades que produzem fogo ficaram grandemente reduzidas. Mas isto não explica o descuido e negligência existentes. De acordo com a protecção cívil 70% das ocorrências resultaram de comportamentos negligentes.

Os portugueses têm uma concepção muito redutora do que é uma obrigação, e com ela, de civismo. Qual de nós não assistiu já à eterna discussão de café do Estado ladrão e do curto-circuito da coisa pública? Quem ouvisse uma discussão entre portugueses julgaria que eram todos fervorosos adeptos da public choice e críticos indefectíveis do free-riding. Nada mais errado. O português vê-se constantemente roubado pelo Estado, mas passa a vida a pedir a sua intervenção. Paradoxo que entronca na falta de identificação com a obrigatoriedade da coisa pública. Esta é evidenciada na maneira como nos comportamos no trânsito, por exemplo; como “engraxamos” os chefes numa competição tripudiando as regras da própria competição; ou como, no caso vertente, colocamos os interesses próprios, e imediatos, à frente da coisa pública. Um exemplo muito simples retirado de experiência alheia, mas próxima. Na zona de Torres Vedras, no dia 12 do corrente, uma amiga contou-me que começou a ver chamas a alastrarem do outro lado da sua rua, num terreno aparentemente baldio. Em pânico, chamou os bombeiros que tendo chegado tão rápido quanto possível, apuraram posteriormente responsabilidades. Veio-se a saber que dois homens de pouco mais de trinta anos tinham feito uma queimada. Porquê? Após todos os avisos das autoridades, do matraquear persistente da comunicação social com as condições sui generis que atravessaríamos durante toda a semana – o que leva dois homens a transgredirem a regra desta maneira?

A primeira resposta que nos ocorre é, impunidade. A minha amiga ouviu a história até onde a relatei e em nenhum momento se falava de sanções. Na realidade não existem – nem legais, nem informais. Poder-se-ia esperar a censura da comunidade, o que levaria provavelmente a uma vigilância mais apertada. O problema é que as relações de interconhecimento não pendem para a censura, mas antes para a desculpabilização. O Manel das vacas conhece os pais do Zé da burra, que por sua vez é primo do Joaquim das galinhas, e qualquer um deles “faz um jeitinho” ao outro, para quando chegar a vez dele, a recíproca seja verdadeira. Vários pensadores brasileiros chamam ao Brasil “o país do jeitinho”, esquecendo muitas vezes que a prática teve uma origem bem definida. Basta reparar que quando as pessoas são interpeladas, nunca ninguém viu nada ou sabe de alguma coisa.

Ora esta impunidade equivale ao desrespeito pela coisa pública; o caso em que a res publica é substituída pela defesa da res privatus. As coisas não são dissociáveis: um tamanho desrespeito pelo Estado significa que o laço mais próximo e privado é aquele ao qual se atribui o privilégio. Ah mas e então as alterações climáticas, não contam? Contam, e de uma maneira global.

Portugal não é dos países europeus com maior área florestal (longe disso). Na realidade, estamos a meio da tabela, com a Suécia em primeiro lugar. Portugal tem três milhões de hectares de floresta enquanto a Alemanha tem 11.500 milhões. A área geográfica é diferente, obviamente; mas mesmo assim porque não arde a Alemanha como arde Portugal?O mito das grandes diferenças climáticas transformou-se nisso mesmo – num mito. É certo que esta semana tivemos temperaturas invulgarmente altas (mas não para Sevilha ou Granada). Porém, as temperaturas que experimentámos em Lisboa não foram muito diferentes das experimentadas em Roma, Itália. E enquanto Portugal arde de uma ponta a outra, a Itália não.

O português vive contra o Estado. Por isso, quando o Estado diz, não faça!, o português faz ao contrário, e pela calada, para não ser apanhado. Por esse país afora, apesar de todas as contraindicações, fazem-se assados e grelhados nas traseiras das casas (porque chegado o verão quem é que pode deixar de comer umas sardinhas assadas ou umas febras?) Fazem-se festas e bailaricos sem condições de segurança e sem salvaguardas florestais. Acumula-se o mato nas parcelas de terreno, porque ninguém mete o bedelho naquilo que é meu! E por aí adiante.

De uma coisa não tenhamos dúvidas. Podemos ter a mais sofisticada prevenção, mesmo em face de drásticas mudanças climáticas; quintuplicar o corpo de bombeiros, ou comprar mais meios aéreos – sem a colaboração das populações os fogos vão continuar a ser um flagelo nacional.