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Um ano de Guerra na Ucrânia. A comunicação social fez best of da guerra a toda a hora; como naqueles programas que passam em revista os melhores acontecimentos do ano e que antecedem a passagem do mesmo. Houve generais de carreira a explicarem-nos o que significa invasão em militarês; houve psicólogos a dizerem o óbvio sobre as feridas psicológicas das vítimas; houve economistas a dissertarem sobre recessões e comoções do mercado bolsista; e houve jornalistas, estes, os mais impantes, a descreverem, num ritual tão sinuoso quanto pérfido, as várias etapas da guerra. Parece haver uma conclusão que todos partilham: a guerra veio para ficar.
Os esquerdistas menos radicais desistiram da retórica do perigo do imperialismo americano, ou adquiriram vergonha suficiente para remeter tais pensamentos a ruminações de grupo ou individuais. É hoje claro, para quem não ande com antolhos, que Putin e o seu escol pretendiam anexar a Ucrânia. Coisas simples como a destruição completa do poderio aéreo ucraniano – que parece que já ficou tão longe no tempo – e a destruição, muito posterior, das estruturas energéticas, exigem concluir que a intenção da Rússia sempre foi uma anexão. E no entanto, os mais radicais, esses esquerdistas que não capitulam perante a imbecilidade, insistem ainda que o problema é a provocação da Ucrânia. A única provocação, é hoje evidente, é a de querer existir. Ipso facto, o esquerdismo mais radical não quer que a Ucrânia exista. Nisso, encontra-se muitíssimo bem acompanhado pelo mais primário nacionalismo russo.
A esse propósito convém recordar um opúsculo de Soljenitsyne, intitulado “Como reordenar a nossa Rússia?”, publicado em 1990, no qual o eixo da questão fica exposto com uma clareza invejável. Segundo o escritor, a Rússia, após perder a influência sobre aquilo que se convencionou chamar os países da cortina de ferro, devia também renunciar às suas aspirações expansionistas asiáticas e focar-se na Ucrânia. Se a URSS, no seu desejo imperialista, se expandiu para a Ásia, devia agora – após a queda do muro – deixar que estas ex-províncias se emancipassem da mãe Rússia e se autodeterminassem. As províncias que em tempo foram soviéticas, tinham direito à sua existência independente, mesmo que no perímetro de influência russo. O remédio, contudo, não tinha a mesma aplicação no que à Ucrânia diz respeito. Para esta, e segundo Soljenitsyne, o destino aprazado era a união com a sua mater russa. Kiev havia sido a pátria dos russ e, naturalmente, devia ser devolvida à sua essência mais pristina, fechando assim um ciclo imperial. Sobre a Ucrânia, diz Soljenitsyne:
“Separar hoje a Ucrânia equivaleria a cortar em dois milhões de famílias e pessoas, de tal modo a população está misturada (…) No tecido da população de base, não existe a menor sombra de intolerância entre ucranianos e russos”, e logo a seguir, remata – “Irmãos! Essa horrível separação não se deve consumar! Trata-se de uma aberração nascida dos anos do comunismo.” (27).
Note-se que Soljenitsyne escrevia estas palavras ainda antes da queda da URSS. A reordenação da Rússia, como “mãe rússia” já se prognosticava no estertor do império soviético. Ucrânia era apenas um incómodo que logo deixaria de existir e a sua incorporação natural na pátria russa seria consumada. Ou não se desse o caso de Kiv “onde a terra russa tem a sua origem”, como se diz na Crónica de Nestor, ponto de irradiação do povo que formou a moscóvia.
Quem ler hoje Soljenitsyne tem dificuldade em acreditar que aquele foi o escritor agraciado pelo ocidente pela sua resistência ao totalitarismo soviético. O problema é que, por detrás desta, encobria-se um nacionalismo místico e bélico. Não é por isso inverosímil que desde a invasão da Crimeia em 2014, a anexação da Ucrânia passou a estar nos planos russos. Como se vê pelo exemplo de Soljenitsyne, a ideia de uma Ucrânia regressada ao seio da pátria russa não germinou apenas na cabeça de Putin. Há muito que fazia parte do nacionalismo russo e que se encontrava inscrita nas suas produções culturais e intelectuais. Por conseguinte, ver os actuais acontecimentos, ou como resultado da loucura czarista de um homem, ou como de um escol isolado de oligarcas que o rodeiam, é falhar o essencial. E o essencial é que a ideia de uma reintegração da Ucrânia no território russo faz parte do imaginário colectivo do próprio povo russo. Também por isso a resistência à invasão cedo soçobrou. Sendo certo que o regime de Putin é opressor das liberdades e que não dá margem para resistências, também é verdade que a oposição visível sempre foi esparsa e desenquadrada, devendo-se esta mais a famílias mistas, russo-ucranianas, do que a uma vaga de fundo de indignação nacional.
Ouvindo o Presidente da autoridade russa no Donbass, outra hipótese, que não seja a da anexação, parece não ter cabimento no pensamento russo. Quando questionado sobre as intenções futuras dos russos, foi dizendo que o Donbass era inegociável; mas para além disso, como tinha sido fornecido à Ucrânia material bélico com capacidade de 300 km, a região só estaria segura se esses 300 km estivessem também sob controlo.
Só quem é parvo é que não percebe que este raciocínio encerra uma petição de princípio: como os 300 km sempre se deslocam mais para o interior, o fim da regressão é a total anexação. O que o Presidente do Donbass queria dizer é que a Rússia só ficaria satisfeita com o desaparecimento da Ucrânia.
Por isso, para a Rússia, não existe outro caminho possível que não seja a guerra total. E para a Ucrânia, não existe outro caminho possível que não seja a total capitulação do inimigo. Quando assim é, as guerras vencem-se pelo desgaste do seu prolongamento indefinido. Foi assim no Vietname, e foi assim no Afeganistão. O problema é que a Ucrânia não tem a capacidade armamentista necessária para um período tão alargado de tempo. E o Ocidente pode cansar-se do seu próprio desgaste, económico e, a ver vamos, se não será também político.
Putin conta com este desenlace. Investiu demasiado dinheiro, homens e tempo para agora recuar. E é neste contexto que surge o plano de paz chinês.
A China, desde o início que tem tido uma posição hipócrita. Há quem lhe chame ambígua, mas não existe nada de ambíguo nas posições que a China tem tomado em relação à invasão da Ucrânia. Pelo contrário, elas são frontalmente a favor da Rússia. Desde o apoio dado nas Nações Unidas, através da abstenção, até ao actual pretenso plano de paz, a China tem vindo a demonstrar a sua solidariedade indefectível com a Rússia. Nessa leitura, é fácil fazer uma exegese do documento chinês. Algo que, tanto especialistas em segurança norte-americanos como ucranianos se apressaram a fazer.
Primeiro, em nenhuma parte se fala em invasão da Ucrânia. Ora isto poderia até passar por exigência inerente à posição do broker – ou seja, o mediador não hostiliza uma das partes, neste caso a Rússia. Mas, como bem perceberam os ucranianos, o primeiro ponto diz exactamente o que pretendem os chineses… e nesse aspecto, é uma tradução fiel das exigências russas.
The sovereignty, independence and territorial integrity of all countries must be effectively upheld. (…) Equal and uniform application of international law should be promoted, while double standards must be rejected.
Estas duas frasezinhas que aqui recorto do primeiro ponto, trazem o essencial da questão; e tornam os itens restantes mero fait divers. Com efeito, o que elas dizem é que a soberania das duas partes deve ser respeitada. Ora, como apenas uma das partes tem, objectivamente, a soberania ameaçada – e essa é a Ucrânia – a “rejeição do duplo standard”, mencionado no final, só pode querer significar a ratificação da soberania russa sobre os territórios ocupados. Aceitar este plano de paz, significaria ratificar as pretensões russas à soberania dos territórios ocupados até agora, sob o pretexto que foram referendados pelo povo, e assim tornados russos. Haverá maior cinismo do que este da parte da China?
Mas porque é que o papel da China é tão fundamental e simultaneamente tão criticável? Porque a China, sozinha, podia acabar com esta guerra. Não o faz, porque tem interesse em sustentá-la. E por isso tem apoiado economicamente a Rússia, provendo a que a choque das sanções seja substancialmente atenuado.
Um ano volvido de silêncio chinês perante as atrocidades russas resultou neste plano de paz. “Temo os chineses mesmo quando estes me dão presentes” – parafraseando Virgílio e as palavras que este coloca na boca de Laocoonte perante o cavalo de Tróia.