A nossa “foxização”

Fox News: ''Abarrotada de mentiras'' - Carta Maior

Quem está a dar a vitória ao PSD? Os jornalistas. A resposta é pronta e segura. A direita, tem sido sempre assim em Portugal, quando se reorganiza, conta depois com o apoio incondicional da comunicação social. O que passa por jornalismo nas televisões é a maior vergonha que já se assistiu. A sobrerepresentação de “painelistas” de direita é tão evidente que qualquer pedido de análise imparcial torna-se risível. Exemplo: após termos assistido ao frente-a-frente de Ana Catarina Mendes e David Justino seguiu-se o comentário de Pedro Marques Lopes que constituiu, nem mais nem menos, do que um prolongamento da intervenção de Justino. De tal forma as ideias eram convergentes, quando não repetições óbvias, que mais parecia um tempo de antena extra concedido ao PSD. PML, que no afamado programa Eixo do Mal disse de Rio o mal e a caramunha, fez agora, no seu comentário aos comentários, um rasgado elogio à postura de Rio. Passar de besta a bestial nas palavras e ideias de PML é um ápice. Mas a estratégia tem sido invariável. Após ouvirmos os comentários dos actores políticos somos bombardeados por comentários aos comentários de supostos actores políticos. É uma reiteração permanente do óbvio; com uma peculiaridade: um viés ideológico imposto em cada reiteração.

Será compreensível que no painel da Judite de Sousa na CNN – essa mulher que alinharia, com certeza, com a fox news caso vivesse do outro lado do Atlântico – estejam representados dois elementos notoriamente comprometidos com a direita (ao nível partidário, inclusivamente), uma que penderia para o PS e uma que é “nin”? Se bem recordo a composição parlamentar que saiu das últimas eleições dava uma maioria à esquerda. Mesmo que quiséssemos imparcialidade ou equilíbrio, pelo menos duas pessoas frontalmente comprometidas com a esquerda deveriam fazer parte do painel. Esta equitatividade não existe nos Estados Unidos, porque as duas grandes televisões noticiosas são aberta e confessamente alinhadas com uma das forças do espectro partidário. Mas não é assim na Europa.

Regresso por isso à pergunta inicial: – Quem está a fabricar os resultados destas eleições? Os jornalistas. Sobretudo os televisivos. O recorte dos sound bites diários nunca antes foi tão parcial e tão constitutivo da própria mensagem política. Estamos aliás a assistir a uma “foxização” das televisões portuguesas, onde os candidatos são retratados como muito bons ou muito maus servindo-se para isso de rótulos construídos através de pedaços judiciosamente recortados do seu discurso político. Escutamos 24 sobre 24 o mantra de que António Costa está cansado e que se quer ir embora. Porém, o mesmo não se pode dizer do outro candidato, o da direita, a quem são prodigalizados os maiores encómios, em vagas sucessivas de apreciações positivas e de recortes publicitários sobre o bom humor e descontração do candidato. O único que salientou a contradição entre esta imagem de um Rio videirinho e a sua real actuação na Câmara do Porto, foi Manuel Carvalho no público. Ora, alguém tem dúvidas que esta limpeza calculista da verdade política de Rio condiciona cognitivamente o juízo político?

E isto é totalmente novo? Não, nem por isso. Quando Passos Coelho ganhou as eleições, aconteceu mais ou menos a mesma coisa. As televisões também andaram com ele e Portas ao colo. A estupefação, misturada com pânico, diga-se de passagem, instalou-se nas hostes televisivas quando se proporcionou a hipótese de uma aliança à esquerda. Recordam-se?

Também agora as televisões se conluiaram para dar a vitória à direita.

Saco de pancada

foto retirada daqui

É difícil ser o PS nesta altura. Se bem que não existe tal coisa como uma entidade PS, não deixa de ser complicado assumir o seu protagonismo. É que raramente vi um partido levar tanta porrada como aquela a que se encontra sujeito o PS nesta contenda eleitoral. Ele é porrada da esquerda; é porrada da direita; e é porrada dos corporativismos diversos que por aí se conjugam para criar um protesto tão audível quanto oportunista.

Primeiro, a porrada da esquerda. Desde os tempos do “olhe que não doutor”, que tornou famoso o frente-a-frente entre Cunhal e Soares, que a esquerda não surgia tão assanhada na desmobilização de um partido opositor. Creio mesmo que, apesar de um cisma notório entre a esquerda então ocupada na sua totalidade pelo PCP e o centro-esquerda do PS, ainda assim havia um terreno de entendimento: a derrota da direita conservadora. Esse terreno subsistiu ainda com a geringonça; foi aliás ressuscitado através de uma solução milagrosa nunca antes tentada; e que surtiu o seu efeito, transformando momentaneamente (em tempos pensei que seria com carácter efectivo) o xadrez político. Mas actualmente, com a geringonça morta e enterrada, os partidos políticos de esquerda concentram baterias no PS; raramente na direita. É certo que nos frente-a-frente com os líderes da direita essas diferenças, as correspondências da luta partidária, ficam bem vincadas. Porém, e no geral, a campanha tem sido orquestrada contra o PS, para minar as possibilidades do PS. Raramente, se alguma vez, se ouve Catarina Martins ou João Oliveira (agora a substituir Jerónimo de Sousa), nos debates onde todos participam, a confrontarem a direita, a oporem-se às suas ideias. Pelo contrário, o PS é o alvo dos ataques e a estratégia, convergente entre os dois, é a de desmobilizar o voto no PS.

Segundo, a direita. O ataque da direita ao PS é sistemático, e expectável. Mas como as vozes se multiplicaram, a redundância do ataque tem uma câmara de eco muito considerável, reverberando em várias direções e com uma insistência inédita. Se o CDS diz mata, a IL logo diz esfola. E quando Rio toca a rebate, de pronto se reúnem as hordas e o ataque ao palácio de inverno é congeminado numa multiplicidade de vozes. Quatro na realidade. Esta convergência de argumentos mostra que a direita encontrou novamente o seu ponto médio. E nem a histeria populista do Chega impede que a concordância seja de tal forma automática que os reflexos pavlovianos abundam. Diferente, bem diferente, de quando Guterres negociava queixos limianos com o CDS. O que aconteceu então? A estratégia de união (fictícia, chega-se à conclusão) da esquerda instigou a uma união ainda mais exacerbada da direita. Podem bem servir-nos com questiúnculas internas de lana-caprina que nós bem sabemos que o dia em que a oportunidade se apresentar sentar-se-ão todos à mesa a partilharem o opíparo repasto. Esta polarização era previsível. O que não era previsível é que a esquerda desmobilizasse tão rapidamente e invalidasse o contrapeso que entretanto se formara e que mudava determinantemente o jogo. A esquerda roeu a corda, e como bem disse Rio, eles que são brancos que se entendam. E assim foi; ou não foi: a corda continua a ser roída com uma insistência lunática.

Finalmente, os corporativismos. Não deixa de ser curioso verificar que é em véspera de eleições que todos os males do mundo se levantam de repente. Os magistrados, os médicos… até os condutores dos TVE! Se as pessoas não tiverem distraídas, concluirão rapidamente que qualquer destes sectores é dominado pelo PSD. O último então é o mais curioso. Tendo absorvido aqueles que eram maioritariamente condutores de táxis, reproduz fielmente os seus tiques e estereótipos. Mas não deixa de ser estranho que, logo agora, estes corpos se ergam com a voz do ultraje para cantarem em uníssono que a situação é insustentável. Por exemplo, os magistrados, habitualmente tão ciosos da sua independência, não tugiram nem mugiram mediante a proposta do PSD de lhes colocar em cima um órgão fiscalizador independente. Mas souberam vir a terreiro protestar pelo estado da justiça e pela sua ineficácia (demarcando-se, como também é hábito, desse mesmo estado). Estranho. Ou nem por isso. Magistrados, assim como médicos, são há muito tempo controlados por forças da direita. Por exemplo, as administrações hospitalares, coadjuvadas pela ordem dos médicos, lembraram-se de escolher este momento para se demitirem em bloco e em catadupa. E os TVEs acordaram agora para a sua insustentável situação.

Dos primeiros, ou seja, magistrados e médicos, podemos ter a certeza de que o momento é concertado e que responde a razões políticas que aliás tantas vezes movem estes corporativismos. Dos segundos, a tendência é conhecida e a submersão nas ideias do Chega é o equivalente actual do consabido conservadorismo caceteiro dos condutores de praça.  

O que é interessante agora é os dois corporativismos mais estabelecidos, como médicos e magistrados, não se pronunciarem sobre as ideias dos programas de direita. Há uma razão para isso: no fundamental concordam com elas. Privatização gradual do sistema de saúde; transição para um sistema de seguros global a la americana.

Os médicos são parte do problema e não da solução. Ouvir Catarina Martins a perorar pela fixação de mais médicos no SNS dá vontade de rir ou então de perguntar se a senhora é parva. A transumância dos médicos entre sector público e privado é das coisas mais protegidas pela classe – quiçá a mais protegida! Basta ver que estas administrações que se demitem em bloco não se preocupam nada com o seu futuro porque este está mais que assegurado nas administrações dos hospitais e clínicas privados. Da mesma forma, querer compatibilizar ordenados do privado com os do público só nas cabeças ventosas do bloco de esquerda. Às vezes pergunto-me se esta insistência no assegurar carreiras no serviço nacional de saúde é parte de uma imensa pantomima ideológica que o bloco arranjou para fixar a sua mensagem. Lembrar, a este propósito, que os médicos são a única carreira dentro da função pública cujo regime de exclusividade tripudia a cláusula que impede todos os outros funcionários de exercerem actividades externas que se sobreponham às internas. Mas um ortopedista do Amadora-Sintra (um como outro qualquer) não encontra nenhum impedimento ao exercício da ortopedia num consultório privado. Nenhuma outra classe conseguiu este regime de excepção. A quem isto aproveita e pode a discussão ser séria sem ter presente que esta é a condição sine qua non que os médicos e a sua ordem impuseram para o exercício do seu metier?

Magistrados e médicos são dos corpos profissionais mais privilegiados deste país. O grito que é dado actualmente expressa uma estratégia política para macular a campanha do PS. Aliás, eles sabem que na ordem dos privilégios a melhor garantia é a maioria da direita.

Os debates

Cobertura: WWE RAW (13/09/2021) – O ouro mais desejado!

Paradoxalmente, têm tido audiências assinaláveis. E isto quando se vislumbra uma abstenção recorde. O que mostra que a pandemia veio dar à domesticidade novos sentidos. A política passou a ser algo que se vê como uma série da Netflix: à espera do clímax do último episódio, que neste caso trata-se do embate final entre Costa e Rio.

E por que é que se vislumbra uma abstenção recorde? Por duas razões. Primeiro, a pandemia. Os infectados terão mais dificuldade em votar, isto apesar das condições especiais que estão a ser preparadas para proporcionar a possibilidade do voto a toda gente. Mas uma razão de maior peso afigura-se imiscuir-se no impulso eleitoral. É que ninguém queria eleições para nada. Não se tinha fechado um ciclo político; não se esgotara um modelo; e as pessoas pressentiam que a pandemia poderia regressar com uma vingança. Os únicos que quiseram eleições foram os líderes dos partidos de esquerda e os secretariados dos seus partidos. É de tal forma assim, que nos debates não há verdadeiramente modelos de governação alternativos a serem discutidos. Os debates – estes debates – têm sido marcados por picardias, remoques sobre as tendências políticas e de organização social de cada um dos contendores em presença, e ataques rasteiros que roçam por vezes o insulto.

Daí que o formato dos debates – dito por alguns: como um combate de box – seja particularmente apropriado aos tempos que correm. Não havendo qualquer razão para se ir para eleições, não há igualmente nenhuma razão para debater. Este vazio encontra-se bem expresso na forma como os debates entre comentadores se alongam por mais tempo do que aquele que é concedido aos candidatos para… debaterem. Pela primeira vez (tanto quanto me lembro) o foco é mais no que os painéis de comentadores dizem do que aquilo que dizem os candidatos. E há painéis de comentadores para todos os azimutes, que repetem à exasperação as mesmas boutades, os mesmos cinismos, as mesmas tontices avaliadoras (o sistema de dar pontos aos candidatos é uma caricatura de jornalismo político como bem sabemos desde os tempos do Prof. Marcelo). E tudo isto com a imparcialidade de membros de claques de futebol.

Sebastião Bugalho ao classificar o debate entre Costa e Ventura, apesar de Costa ter estado à altura, segundo ele, levou dois pontos, e Ventura levou quatro. Não espanta. O amor por Ventura pela parte do PSD ficou bem expresso pelo debate com o seu líder Rui Rio. Porém, o problema é que dar 4 a Ventura pela performance é tripudiar a ética da comunicação política, na medida em que se escamoteia completamente o conteúdo político e se tecem loas à performance.

Facto é que os comentários têm sido um prolongamento dos debates. Um prolongamento de registo. Porque assim como os debates têm sido exercícios de performance, também os painéis que os seguem são exercícios de apreciação das performances. Uma pequena olimpíada da ginástica política.

Nada mais significativo disso mesmo do que o contador colocado no canto superior esquerdo da CNN Portugal com uma contagem decrescente para o debate Costa/Rio. Haverá maior exemplo de política espectáculo? A este propósito, a CNN Portugal consegue fazer a proeza de ser a mais conservadora das CNNs. Aliás, aquele pendor liberal e progressista que é o timbre de todas as CNNs – a começar pela original norte-americana e a acabar com a brasileira no país da ditadura bolsonarista – não se verifica em Portugal. Imagem tipo do ranço político-mediático que por cá se cultiva. Basta ver o surtido de comentadores que por lá se alcandora, com Maria João Avilez à cabeça, passando pela novel estrela da direita Sebastião Bugalho e indo aterrar em Carlos Magno. Este elenco era por si só inimaginável na CNN americana. A nossa tem mais afinidades com a fox do que com a real CNN. Uma tristeza.

Por isso mesmo temos um contador a anunciar a batalha final. Podíamos inclusivamente ter uma musiquinha como aquela que anuncia a superball do outro lado do atlântico. É um facto, os debates substituíram-se à política; e podemos inclusivamente parafrasear Séneca sobre a vida, ele próprio glosado por Shakespeare, “a «política» é como uma peça de teatro: não é a duração, mas a excelência da representação que importa”.