Onde há fumo há fogo

imagem retirada daqui

A teoria começa a fazer o seu caminho. Diz ela que por detrás desta maré de fogos que todos os anos consome a nossa floresta estão os bombeiros. E a razão, sendo cínica, é bastante racional. Na medida em que os bombeiros são pagos pouco acima do ordenado mínimo, é racional, individualmente, que se aumente o salário recorrendo às horas de combate a incêndios. É o eterno problema português: não é as diferenças entre categorias – é dentro das mesmas categorias. Assim, chega-se ao ridículo de haver bombeiros profissionais que ganham mais de 2500 euros, segundo tabela da função pública, e voluntários a ganharem 2,5 euros por hora. O fenómeno é comparável com a situação de disparidade entre médicos do público e do privado. O problema – e é aqui que entra a teoria semi-conspiratória – está no facto, inteiramente racional também, segundo o qual para aumentar o meu pecúlio tenho que aumentar as horas de combate ao fogo, sendo bombeiro voluntário, o que equivale à maioria dos bombeiros. Mas para isso é preciso que ele, o fogo, exista. Estes comportamentos são racionais; o resultado, contudo, é completamente irracional.

Estamos perante uma situação catch 22. Dentro desta lógica torna-se previsível que termos mais bombeiros equivalha a mais fogos. Porque não podemos deixar de nos interrogarmos quando assistimos ao festival de petulância inconsequente nas declarações de responsáveis pelas forças de segurança, bombeiros incluídos. Com que cinismo a liga dos bombeiros veio felicitar a execução de uma auditoria independente para logo de seguida duvidar da sua independência? E quem assistisse ao comandante da polícia judiciária a ser entrevistado na televisão com uma verborreia oca e indeterminada, que nem sequer conseguiu dizer se havia ou não mais fogo posto, teria todas as razões para desconfiar das boas intenções! Mas depois aparece um presidente de junta a dizer que qualquer dia as populações lincham alguém. Supõe-se então que esse alguém deve corresponder a entidade concreta e, portanto, é um alguém que alguém até conhece. Será que algum dia chegaremos à resolução do enigma? Ou estaremos condenados, ano após ano, a ver o país arder deixando para memória futura morros carecas e aldeias despovoadas?

A irracionalidade do processo reside no facto comprovável da irreversibilidade da destruição. Sendo certo que a natureza possui uma capacidade insólita de se regenerar, tornou-se também evidente que as estruturas turísticas ou suas coadjuvantes, quando o motivo pelo qual foram erguidas se esvai em cinzas, não sobrevivem a hiatos temporais alargados. Hectares calcinados não atraem multidões; e até que uma leve penugem verde comece a atapetar montes e vales passam anos cuja conta corrente deixa de ser sustentável. As estruturas – e com elas as pessoas – que sobreviviam porque os lugares além da tipicidade exibiam uma natureza luxuriante acabam por definhar.

Por esse facto, o escândalo dos incêndios devia concitar um debate nacional bem para além das banalidades, umas mais técnicas outras mais prosaicas, que são despejadas por responsáveis e participantes. Num país onde o crime tem formas de repercutir nos media como num aparelho de amplificação, fala-se muito pouco dos culpados e das motivações do fogo posto. Não se conhecem as penas, quando qualquer caso que envolva político ou figura pública rapidamente encontra vazão nas páginas dos pasquins mais amarelos. Porque nunca há alarido em torno das penas dos pirómanos? Quem são eles? E quando são bombeiros – que os há, e não são assim tão poucos – que motivações subjaceram aos seus actos?

Portugal – imaginemo-lo como uma entidade psíquica – fala mais através dos seus silêncios do que por aquilo que é dito. Devemos habituar-nos a ler o que realmente interessa nos silêncios, e silenciar a ocupação palavrosa do espaço público. E esses são muitos; e como forma de desimplicação das responsabilidades devidas são muito eficazes.

Escrevi em post anterior que a culpa dos incêndios encontrava-se na negligência das pessoas. Parece, contudo, que esta afirmação deve ser revista. Porque quando no rescaldo de um mega-incêndio na Serra da Estrela logo outro começa em Tomar – no dia imediatamente a seguir para ser preciso – é difícil acreditar na fortuitidade dos acontecimentos. Incêndios sequenciais resultam certamente de mão humana. A causalidade da negligência rege-se mais pela contingência do que pela necessidade sequencial. Por isso, parece demasiado a propósito que quando o incêndio da serra da estrela se dava por controlado outro fosse posto a lavrar umas centenas de quilómetros abaixo. Pode até existir um padrão nos incêndios, o que este não pode é ser sequencial. Por azar, o primeiro incêndio estava longe de se encontrar controlado, por isso ainda hoje (caminhando para o 13 dia) lavra na serra. Mas a sequencialidade das ocorrências implica logicamente a intencionalidade humana.