A bomba-relógio chamada desigualdade (racial) norte-americana

Luxury stores looted by rioters in the US after George Floyd killing

Os dois acontecimentos recentes que têm causado comoção na sociedade norte-americana envolvem dois homens afro-americanos. E nesse sentido poderiam ser interpretados como casos de racismo directo e sem apelações por parte dos brancos envolvidos neles. Contudo, o caldo onde fermenta a revolta a que estes dois acontecimentos deram respaldo é bem mais complexo e amplo.

O capitalismo autoritário imposto por Trump e pelo Tea Party nos últimos anos, apesar de ter operado aquilo que aparentava ser um milagre económico, mostrou a sua razão de ser assim como as suas maiores iniquidades durante a pandemia do covid-19. De milagre passou a pesadelo. E a razão é relativamente simples. O milagre estava sustentado numa flexibilização sem precedentes do mercado de trabalho, de uma diminuição do Estado – mas não nos sectores militares e de segurança – e consequente recuo na sua função de rede protectora. De um momento para o outro, a economia norte-americana atirou para o desemprego 40 milhões de pessoas. A voragem neoliberal da administração Trump, o modelo Paul Ryan de deixar o mercado fazer o que tem a fazer com a mínima intervenção do Estado, provocou o resultado que agora se encontra patente. Mas Trump não iniciou um programa de distribuição de dinheiro sem precedentes na economia norte-americana? Sim, é certo. Dinheiro que foi parar aos bolsos dos empresários que entretanto se tinham libertado de 40 milhões de empregados. O impensável aconteceu. Dois meses de recolhimento e não existe, na maior economia do mundo, um sistema de proteção suficientemente robusto que pudesse ter garantido o emprego destes milhões de pessoas. E não existe por opção política.

Por isso, os tumultos a que vamos assistindo por todo o país são o resultado de um caldeirão explosivo que apenas precisava de um rastilho. Muitas destas pessoas não têm nada a perder. Se o racismo emerge como transmissor do protesto e signo da indignação, as pilhagens e a destruição resultam da tempestade que se abateu sobre os mais pobres dos norte-americanos. Porque, afinal, quem são estes 40 milhões de desempregados que de um dia para o outro se viram sem emprego, e perversidade das perversidades – como o seguro de saúde se encontra associado ao facto de estar empregado -, sem acesso ao sistema de saúde em simultâneo?

Primeiro, temos os negros e os hispânicos. São os grupos que registam níveis de desemprego mais elevados – 16,4% e 18% respectivamente. Mas há um grupo que horroriza pela dimensão da perda e do sofrimento: os trabalhadores mais mal pagos e menos qualificados são aqueles onde o desemprego mais grassou – 6,8 milhões de pessoas. Para estes, com a moratória das rendas a chegar ao fim, e o negócio dos bancos a voltar, perdoe-se o pleonasmo, ao business as usual, vai ser uma devastação. Depois dos empregos, irão eventualmente perder as casas, e com isso as famílias, e por aí afora, numa espiral mortal que não surge como tendo fim aos olhos das suas vítimas.

Para estes, sair à rua, protestar, pilhar e destruir, é o único acto válido, arriscaria mesmo dizer, o único acto onde ainda se sentem reconhecidos.

Os protestos que alastram pelos Estados Unidos falam de racismo, é certo. Mas falam também, e mais audivelmente, de milhões de pessoas que foram abandonadas porque o sistema que insiste que a liberdade é mais importante do que a igualdade é um sistema perverso.

Porque o que mostram as imagens do vídeo de Amy Cooper, a mulher que ficou histérica porque um afro-americano lhe pediu para colocar uma trela no cão, não é apenas racismo. É uma sociedade em que alguns se sentem com o poder para fazer o que lhes dá na veneta – a liberdade – e onde para outros é suposto acatar aquilo que aos primeiros interessa impor. A liberdade sem ética, como há muito nos ensinaram kantianos de vários propósitos e inclinações, não é liberdade.

A liberdade sem ética, aquela defendida por Paul Ryan, é significada nos pequenos atos de abuso de saúde pública entre os apoiantes de Trump que se recusam a usar máscara. E como numa torção de consequências imprevisíveis, os manifestantes que colocaram as cidades americanas a ferro e fogo, escolhem igualmente a liberdade de não usar máscara perante um país que os abandonou. Parecem dizer que entre a miséria e o covid, que venha o diabo e escolha.

E é essa diferença também que se nota entre os protestos pacíficos em algumas capitais do mundo, inclusivamente na cidade de Nova Iorque, e os tumultos que atingem diversas outras cidades norte-americanas. A ironia da situação, se de ironia se tratasse, reside no facto de que uma administração que tratou o confinamento decorrente da proteção contra a pandemia de forma tão negligente, impor agora o recolher obrigatório em diversas cidades. Trump é de facto o palhaço perverso dos filmes do Stephen King. Desdenhou de uma pandemia, que exigia confinamento, e que destruiu o provimento de parte da população, e envia agora as tropas para a rua para que estas fiquem limpas de gente e de vozes.

O dia em que a terra parou

Temperaturas elevadas podem travar coronavírus - Ciência

É o título de um filme da década de 50 do século passado cujo remake mais recente teve como protagonista Keanu Reeves. O enredo tem as marcas de um outro tempo, um tempo onde as ameaças vinham de fora, neste caso do espaço infinito.

Quando olharmos com alguma distância para os dias actuais iremos recordar que estes foram os meses em que a terra parou – mas a ameaça era bem doméstica. Volvidos 4 meses do anúncio da epidemia na China, todos os países, mas literalmente todos, têm casos de infecção pelo covid-19.

Os países têm parado sequencialmente. Alguns protelam a decisão (caso da Rússia e do Brasil); outros avançam para ela aos primeiros sinais (caso de Portugal ou da Argentina). No entanto, paira no ar uma imensa apreensão. Vários sofrem por antecipação a hecatombe que se adivinha, enquanto outros deixam os filhos estampar arcos-íris nas janelas, reproduzidos em Twitters virais, a dizerem “vai ficar tudo bem”.

Não há memória de uma coisa assim. E até a comparação com a designada “economia de guerra” parece ficar bem aquém daquilo pelo qual estamos a passar. Numa economia de guerra há produção, concentrada em determinados sectores, e se alguma coisa, há uma reorientação do aparelho produtivo para produtos específicos, sobretudo armamento. Há também uma dinâmica colectiva onde uns são preparados para a frente de batalha e outros ficam nos bastidores a tratar das provisões dos primeiros. É certo que as comparações abundam: os profissionais de saúde são os nossos soldados e o material de que necessitam começa a tornar-se prioritário na reorganização de nichos do sistema produtivo. Tirando isso é todo um mundo que se encontra em confinamento obrigatório nas suas casas. Nada tem a ver com a mobilização gerada pelo contexto de guerra. A nossa guerra é assistir passivamente ao desenrolar da contaminação e como numa distopia de magnitude demencial cerrar os dentes e esperar pelo melhor.

Mas se a nossa vida parou por tempo indefinido, podemos no entanto ter a certeza de que, parafraseando aquele inefável momento em que Liza Minelli canta as suas angústias no New York New York, o mundo não para de rodar.  E neste movimento perpétuo teremos que estar atentos ao que aí vem, ao que se prepara, ao que alguns já congeminam. Ficando pelo nosso burgo e pelos problemas à escala nacional, não deixa de ser curioso como um conjunto de organizações, representantes dos grupos profissionais mais variados, se tem vindo a mobilizar para aquilo que se assemelha a um bodo aos pobres. De repente ninguém tem dinheiro. Aquelas confederações como a CAP ou a CIP, tão aguerridas em tempos de paz a combater o Estado e a limitar a sua intromissão na iniciativa privada, exigem do Estado, ou seja, de todos nós, um saco sem fundo de recursos. Chegámos ao ridículo de ver a ordem dos dentistas exigir dinheiro do Estado porque, dizem eles, as suas actividades estão paradas. Ora, não é preciso ser ministro da economia para saber que as clínicas privadas, sejam de dentistas sejam de outras especialidades, dão milhões de lucro. Onde está esse dinheiro? O mesmo para a CAP, onde estão os milhões das zonas vinícolas, das grandes explorações agrícolas, dos grandes latifundiários que enfeitam a nossa província com mansões e carros de luxo? E a CIP? Onde estão os milhões dos Amorins e Sonaes desta terra? O que eu quero dizer com isto é que circunstâncias excepcionais exigem medidas excepcionais. O dinheiro destas pessoas, o dinheiro das grandes fortunas ou mesmo das mais pequenas tem que ser obrigado a reentrar na economia.

Alberto Tórres, o muy lucido presidente da Argentina, afirmou recentemente que o coronavírus nos devia levar a reflectir que o tempo do êxito individual e de ganar plata (sic) deveria chegar ao fim – trata-se de instituir o tempo da solidariedade. Aqui a palavra não deve ser confundida com filantropia: caso em que Bill Gates decide retirar 100 milhões da sua colossal fortuna de 90 biliões de dólares para as necessidades impostas pela pandemia nos Estados Unidos. O que Tórres tem em mente é uma associação diferente, um contrato social de uma outra natureza. E neste sentido, as economias privadas devem ser chamadas a sustentar os alicerces da economia que sofrerão nos próximos tempos um desgaste inaudito. Não é admissível que os dentistas não se mutualizem para assegurar os seus postos de trabalho. Não pode ser o Estado a acorrer a todas as lacunas e dificuldades porque iremos passar. Não é admissível que os grandes agricultores não se organizem para suster a desgraça dos mais pequenos. E também não é admissível que os empresários se preparem para sugar os fundos do Estado sem porem nada deles.

É certo que 70% do tecido empresarial português é constituído por pequenas e médias empresas. Mais uma razão. Algumas destas empresas dão lucros muito significativos com custos exíguos. Não podemos ficar presos nesta chantagem de que as empresas não possuem dimensão suficiente. É justamente por isso que é viável exigir que as economias dos seus responsáveis entrem no plano de recuperação. Ou seja, isto não deve ser dado como opção, nem deixado ao voluntarismo do empresário, mantendo o ajuste com a lógica da iniciativa individual que nos guiou até agora. O dinheiro que estava a ser canalizado para andares de luxo, carros de alta gama, e património familiar deve ser obrigatoriamente direcionado para assegurar postos de trabalho. Como diz Tórres, não é mais tempo de ganar plata.

Não me interessa o que dizem os economistas. Os economistas são os mentores deste modelo insano que enriquece uns tantos e empobrece todos os outros. Por isso, a proposta da CIP de transformar garantias do Estado em subsídios a fundo perdido deveria ser avaliada caso a caso. Fazer chover dinheiro pode ser uma boa estratégia, mas desresponsabiliza os muitos que não querem perder os privilégios adquiridos em tempos de vacas gordas. Muitos estarão a pensar: eu não vou diminuir o meu nível de vida e espero que o Estado cubra o prejuízo. Muitos estarão já a deslocar o dinheiro para off shores e contas na Suíça, porque mais vale prevenir que remediar.

A reconstrução da sociedade tem de ser feita noutros moldes. Os avisos do papa podem soar muito caridosos, mas não passam, como sempre, de boas palavras sem qualquer efeito real. Os governos terão que se colocar ao lado daqueles que precisam e não dos ricos, como parece ser o timbre desde que a reaganomics ocupou o mundo. Saindo da Europa para a América Latina, aí o potencial de devastação é gigante. São milhões de pessoas cujos trabalhos – não se pode falar de empregos – são constituídos por biscates, ganchos, pequenos serviços. Toda uma economia informal incapacitada pela exigência de distância social. A desigualdade escandalosa da maioria de países como o Brasil, a Argentina, Colômbia, o Perú ou o Panamá, para ficarmos apenas pelos mais graves, terá de ser contrariada pelos governos, pela força se for preciso. Os ricos têm de deixar de viver nos seus castelos rodeados de favelas e villas e serem chamados a contribuir. Não basta dizer que são eles que dão o emprego. Essa justificação deixou de ser suficiente. Precisam de dar mais. Precisam, na realidade, de perder.

A espacialização da desigualdade

As cidades são o melhor ambiente para ler as assimetrias sociais. Deixou de ser o consumo, com a massificação dos produtos, a extensão das condições de crédito, e a reapropriação da alta costura em ciclos de reciclagem pelas marcas populares e acessíveis. Certamente que a um certo nível o consumo ainda é a bitola pela qual ler essa assimetria. O consumo de luxo figura nessa ordem de categorizações. Contudo, quando a fasquia não é colocada tão alto, as formas consumistas oferecidas actualmente permitem uma mediania não distintiva a que a maioria tem acesso. Mas o desenho da cidade, porque menos perecível, assume, ele sim, o lugar da interpretação das assimetrias. Nada é mais explícito do que a incomensurável distância social e simbólica dos lugares com valorização fundiária por relação com a uniformidade da habitação prática de certos subúrbios. Isto porque a lógica da suburbanização não corresponde em todas as cidades a desclassificação. Em Portugal é visível que existem subúrbios altamente valorizados pelo mercado e outros completamente escorraçados das lógicas de valorização. A implicação mais imediata desta rejeição prende-se com um ciclo vicioso de falta de planificação reforçado pela impossibilidade de suscitar interesse a parcerias lucrativas. Dentro desta lógica, zonas existem que oferecem um conjunto de elementos que sobrepujam a sua condição suburbana, tais como proximidade do mar, proliferação de espaços verdes e zonas de baixa urbanização, bons acessos aos centros empregadores, e associação simbólica com zonas de estirpe nobre, como é o caso de Cascais e de Sintra que embora suburbanas… É certo que a mancha se fragmentou e que ao invés de uma dispersão radial em relação ao centro temos uma multiplicidade de centros que configuram outros tantos fenómenos de centralização de direito próprio. Seja como for, apesar desta morfologia se manter fundamentalmente análoga entre estes alglomerados policentrados, ou melhor, apesar de manifestarem sensivelmente a mesma estrutura urbana, não significa que ofereçam condições indênticas. Por essa facto, mesmo que uma zona como o Cacém ou Queluz ofereçam todos os benefícios da centralidade, inclusivamente serem adjacentes das rotas de comutação quotidiana, não possuem o mesmo efeito de atracção, nem para as mesmas classes, que zonas como Cascais ou Oeiras. Aliás, se há recorte onde a assimetria se instalou na ecologia urbana esse é com certeza o das duas linhas. De um lado, da linha de Sintra, a concentração não planificada, a distribuição racializada de territórios inóspitos, a escassez de zonas verdes ou intermediárias, e a conurbação por excesso, marca a resistência à valorização do mercado e o afunilamento da oferta para segmentos mais baixos. Do outro, a designada linha de Cascais, com a sua intencionalidade marítima, na qual a planificação obedece à estrutura dos gostos de segmentos de mercado elevados, com a proliferação de espaços verdes e zonas intermediárias porque de alta rentabilização fundiária, ou seja, a resistência ao aproveitamento intensivo do espaço porque o metro quadrado é altamente lucrativo, e as suas malhas de habitações singulares e isoladas (vivendas, condomínios, quintas) converge para uma configuração de urbanidade altamente atractiva para as classes altas. No meio destes dois polos, surge o fenómeno mais explosivo, e porventura o mais rentável dentre as escolhas do mercado imobiliário. A ocupação intensiva do centro da cidade pelas classes possidentes. A migração dos subúrbios de luxo para o interior da cidade metropolitana foi em Portugal mais tardia do que no resto da Europa. Mas deu-se, e tem atingido um vigor absolutamente assinalável que em nada fica a dever a grandes capitais como Paris ou Roma. Refiro-me à natureza do processo e não ao volume ou rentabilização. Facto é que o centro de Lisboa tem exercido a mesma atração simbólica e classista que a maioria dos grandes centros europeus. Aqui a assimetria assume os seus aspectos simultaneamente mais agudos e ilusórios. Agudos porque o centro da cidade tem servido de reserva do investimento capitalista em larga escada apenas e só para empreendimentos de gama alta e muito alta. O velho chavão de de devolver a cidade aos cidadãos funciona apenas para aqueles de altíssimo poder aquisitivo. E não deixa de ser curioso que com o desaparecimento de uma população idosa mais heterogénea estatutariamente, o centro seja assaltado por uma homogeneidade classista sem par. O centro de Lisboa actualmente é dos ricos e faz-se para os ricos. Ilusórios porque sendo o centro o lugar por definição das novas tendências e consumos culturais cria a ilusão de que se encontra aberto democraticamente. Nada mais falso. E se bem que, como observado frequentemente, é no centro que o protesto e a contestação exibem e ocupam o seu lugar performativo, não deixa por outro lado de ser verdade que o quotidiano habitado é exclusivo das classes possidentes. Podemos argumentar que na realidade existem zonamentos diferenciados no próprio centro, áreas de certa maneira marginais ao processo de nobilitação por cima. Julgo que é uma tendência transitória. Com a revalorização daquilo que é de natureza simbólica em detrimento de física, a diferenciação imposta pela capacidade de usufruir dessa configuração nobilitada (e acto contínuo, nobilitadora) será cada vez mais procurada e terá o seu preço de mercado cada vez mais inflacionado. Querem ver uma radiografia das assimetrias sociais da sociedade portuguesa? Desloquem-se por Lisboa.

Ouçam o que ele diz, pois está coberto de razão…

Ouçam o que ele diz, pois está coberto de razão. Mas a fractura não fica apenas exposta entre a elite e o povo, ou numa geometria demasiado arrumada, entre os de baixo e os de cima. Até porque estas posições sofrem cambiantes e estão longe de se encontrarem em relações proporcionais e equidistantes entre posicionamentos sociais. O esmagamento dos de baixo não resulta apenas do despudor dos governantes ou da violência exercida e comanditada ao governo pelos grandes grupos económicos. O esmagamento dos de baixo existe quase como constante de uma relação de desigualdade crescente que se impôs em Portugal. Os actores desta imposição não são nem definíveis assim directamente nem circunscritíveis a uma elite. Ou melhor dizendo, eles respondem de facto a uma elite, mas é mais no sentido weberiano do que no marxista onde esta se encontra definida de uma vez por todas na relação estabelecida entre os grupos e as forças produtivas. No sentido weberiano, as elites, plural, são diversas e recobrem múltiplos campos, não necessariamente subsumíveis ao económico, mas cujas estratégias são invariavelmente de fechamento e açambarcamento dos capitais que possuem.

Desta forma, para além da elite económica propriamente dita, a qual podemos situar numa cúpula de poder para efeitos analíticos, temos elites intermédias, cujo exercício de esmagamento não é menos consequente. Médicos, advogados, engenheiros, as designadas profissões liberais (mas não todas, obviamente), que podendo ou não confinar com a elite económica, a do grande capital, exercem igualmente uma violência não despicienda. A elite dos médicos por exemplo – mas seria extensível aos profissionais de saúde com habilitações mais elevadas, tais como psicólogos – goza de uma posição privilegiada ao controlar ambos os sistemas de saúde: o privado e o público. Deste controlo resulta mais-valias monetárias significativas, pelo acúmulo de rendas extraídas dos dois sistemas. Resulta igualmente uma forma de simbiose perfeita entre os dois sistemas em que ambos se retroalimentam tendo a jusante sempre os mesmos destinatários – consulta no público, análise no privado: o mesmo médico em ambas extremidades do processo. A promiscuidade deste sistema não faz com que os preços sejam competitivos, nem num lado nem noutro, ou tão-pouco que a escolha seja mais alargada. Com efeito, tem como consequência um fechamento perfeito e impositivo entre um sistema de saúde para pessoas abastadas e um para gente sem recursos. Mas como as pessoas abastadas não chegam para o incremento progressivo do sistema paralelo privado, o Estado tem que se encarregar do transporte de parte dos utentes do público para o privado, aceitando assumir o ónus dessa transferência – é o que fazem sistemas comparticipados como a adse e outros. Dos dois lados – os mesmos profissionais de saúde.

Quem diz a saúde, diz a justiça. Aqui o problema não se trata certamente da morosidade, como reiterado até à exaustão por tantas vozes críticas. Ou seja, pode até ser um problema, mas não é o PROBLEMA. A perversão na justiça está nos seus preços. Uma justiça incomportável para pessoas de baixos rendimentos, mais uma vez cria uma cisão entre grupos com recursos e todos os outros. O facto de ninguém, para além dos próprios profissionais do sector, perceber a correspondência entre despesas exigidas e serviços prestados faz com esta relação possa ser perfeitamente arbitrária e elástica. Como não existe nada tabelado para além dos serviços que cometem ao Estado, os advogados estabelecem os seus honorários segundo critérios absolutamente obscuros. O resultado é que mais uma vez só acede à justiça quem pode pagar.

É preciso que se diga que estes grupos profissionais não são vítimas inocentes da perversão do sistema ou dos desmandos governamentais: eles são os principais responsáveis e beneficiários. Alimentam, por conseguinte, o estabelecimento e extensão social da desigualdade, através de processos de açambarcamento coercivo (monetariamente falando) de recursos essenciais.

Em suma, podendo estes estar formalmente contra uma qualquer putativa situação de crise que se esteja a viver, em termos reais não são por ela atingidos. Assim como, se o dono do pequeno café terá algo a lamentar, já o dono do restaurante de luxo não se pode queixar: as elites alimentam-se mutuamente – basta que para isso partilhem dos mesmos mercados. Ora é isso que cada vez mais se verifica em Portugal, bem para além do fosso intransponível entre o grande capital e a massa – que não existe nestes termos de oposição absoluta, repito – o que se constata é a justaposição de mercados excludentes com regras cada vez mais estabelecidas e interconectadas baseadas em princípios de fechamento progressivo.

A crise não é como o sol – quando nasce não é para todos.

O espanto de Alvim perante a revelação de José Manuel Sobral segundo a qual Portugal seria o país mais desigual da EU (ex aequo com a Inglaterra, segundo Sobral, o que não é verdade…) mostra bem o grau de inconsciência em que certas pessoas vivem. Não creio que Alvim estivesse a ironizar, a meter aquelas colheradas inoportunas em que é useiro e vezeiro no seu programa. Estou em crer que o espanto era genuíno. O nível de alheamento de uma parte do país relativamente a outra não é de maneira nenhuma mitigado pela aluvião de notícias preocupadas com a catástrofe da crise com que vivemos. Se ela existe, essa aluvião, é facilmente absorvida na torrente de sound bites noticiosos e arrolada ao panegírico de desgraças e desgraçadinhos que é o humos da notícia no Portugal hodierno. Repare-se que mesmo quando tratados casos de sucesso com uma admiração colectiva incontinente é ainda e sempre a crise como pano de fundo que emerge por contraste. Onde medra este caleidoscópio de acontecimentos catastróficos, nenhuma medida de serenidade analítica pode sobreviver. E não nego a presença da crise e a sua efectividade na vida de muitas e de muitos. Pergunto-me apenas, o que acontece quando esta é transformada em material de diletantismo jornalístico com o cortejo de reportagens semi-ensaísticas sobre vidas despedaçadas e sem esperança? Pois torna-se motivo de espectáculo. A espectacularização da crise – que não toca a todos da mesma maneira e muito menos na mesma intensidade – permite que esta, a crise, seja mote reincidente nos mais diversos comentários e disposições pessoais. Note-se que o espectáculo não tem necessariamente que ser divertido. Se assim fosse os reality shows não teriam audiência. O espectáculo pode ser trágico, sem por isso perder a sua espectacularidade. A acção pragmática do motivo crise é uma espécie de epilogismo que termina invariavelmente na desocultação da razão principal: – Pois, é a crise! Em Portugal, se existe tendência disseminada é a de enfileirar em coros de peroração. Se alguém sofre pela crise – sofrer genuinamente, até à dor -, não faltará quem apareça que se junte a tal fado, demonstrando que ainda é mais vítima do que a vítima. E esta obsessão pelo pathos colectivo encobre que muita gente há que não se viu, nem se vê no seu quotidiano, minimamente atingida pela crise. E mesmo que tenha sido alvo das mesmas medidas que ora debelam ora agudizam essa mesma crise, o impacto que estas exercem sobre ela é milhares de vezes mitigado dada a sua condição adquirida.

Este encarneirar nas agruras da crise torna-se assim duplamente enganador. A uma, porque minora o sofrimento daqueles a quem a crise assola verdadeiramente; a outra, porque ao torná-la destino colectivo surge com a inevitabilidade incontornável de um fardo que todos devemos carregar. O que é preciso acentuar é que este carrego não possui o mesmo peso para todos. É obsceno ver figuras televisivas da moda a sentirem a penúria alheia num espectáculo de empatia tão fabricado como degradante. É obsceno ver a maneira como se oferece dinheiro em iniciativas avulsas com a indicação paternalista que aquela quantia vem mesmo a calhar em tempo de crise, quando por vezes as quantias ofertadas equivalem a dois e três meses de ordenado dos seus anunciadores. É ainda obsceno ver como comentadores pagos a peso de ouro se aliam emocionalmente, em diversos meios de divulgação mediáticos, às massas anónimas afectadas pela crise com um paternalismo caritativo de puxar a lágrima ao mais coriáceo dos indigentes sociais. Temos então de nos proteger contra este processo de transformação da crise num estado de latência total incorporado nas dinâmicas representacionais do colectivo. Devemos opor a este facilitismo mental a máxima segundo a qual a Crise quando nasce não é para todos