Os dois acontecimentos recentes que têm causado comoção na sociedade norte-americana envolvem dois homens afro-americanos. E nesse sentido poderiam ser interpretados como casos de racismo directo e sem apelações por parte dos brancos envolvidos neles. Contudo, o caldo onde fermenta a revolta a que estes dois acontecimentos deram respaldo é bem mais complexo e amplo.
O capitalismo autoritário imposto por Trump e pelo Tea Party nos últimos anos, apesar de ter operado aquilo que aparentava ser um milagre económico, mostrou a sua razão de ser assim como as suas maiores iniquidades durante a pandemia do covid-19. De milagre passou a pesadelo. E a razão é relativamente simples. O milagre estava sustentado numa flexibilização sem precedentes do mercado de trabalho, de uma diminuição do Estado – mas não nos sectores militares e de segurança – e consequente recuo na sua função de rede protectora. De um momento para o outro, a economia norte-americana atirou para o desemprego 40 milhões de pessoas. A voragem neoliberal da administração Trump, o modelo Paul Ryan de deixar o mercado fazer o que tem a fazer com a mínima intervenção do Estado, provocou o resultado que agora se encontra patente. Mas Trump não iniciou um programa de distribuição de dinheiro sem precedentes na economia norte-americana? Sim, é certo. Dinheiro que foi parar aos bolsos dos empresários que entretanto se tinham libertado de 40 milhões de empregados. O impensável aconteceu. Dois meses de recolhimento e não existe, na maior economia do mundo, um sistema de proteção suficientemente robusto que pudesse ter garantido o emprego destes milhões de pessoas. E não existe por opção política.
Por isso, os tumultos a que vamos assistindo por todo o país são o resultado de um caldeirão explosivo que apenas precisava de um rastilho. Muitas destas pessoas não têm nada a perder. Se o racismo emerge como transmissor do protesto e signo da indignação, as pilhagens e a destruição resultam da tempestade que se abateu sobre os mais pobres dos norte-americanos. Porque, afinal, quem são estes 40 milhões de desempregados que de um dia para o outro se viram sem emprego, e perversidade das perversidades – como o seguro de saúde se encontra associado ao facto de estar empregado -, sem acesso ao sistema de saúde em simultâneo?
Primeiro, temos os negros e os hispânicos. São os grupos que registam níveis de desemprego mais elevados – 16,4% e 18% respectivamente. Mas há um grupo que horroriza pela dimensão da perda e do sofrimento: os trabalhadores mais mal pagos e menos qualificados são aqueles onde o desemprego mais grassou – 6,8 milhões de pessoas. Para estes, com a moratória das rendas a chegar ao fim, e o negócio dos bancos a voltar, perdoe-se o pleonasmo, ao business as usual, vai ser uma devastação. Depois dos empregos, irão eventualmente perder as casas, e com isso as famílias, e por aí afora, numa espiral mortal que não surge como tendo fim aos olhos das suas vítimas.
Para estes, sair à rua, protestar, pilhar e destruir, é o único acto válido, arriscaria mesmo dizer, o único acto onde ainda se sentem reconhecidos.
Os protestos que alastram pelos Estados Unidos falam de racismo, é certo. Mas falam também, e mais audivelmente, de milhões de pessoas que foram abandonadas porque o sistema que insiste que a liberdade é mais importante do que a igualdade é um sistema perverso.
Porque o que mostram as imagens do vídeo de Amy Cooper, a mulher que ficou histérica porque um afro-americano lhe pediu para colocar uma trela no cão, não é apenas racismo. É uma sociedade em que alguns se sentem com o poder para fazer o que lhes dá na veneta – a liberdade – e onde para outros é suposto acatar aquilo que aos primeiros interessa impor. A liberdade sem ética, como há muito nos ensinaram kantianos de vários propósitos e inclinações, não é liberdade.
A liberdade sem ética, aquela defendida por Paul Ryan, é significada nos pequenos atos de abuso de saúde pública entre os apoiantes de Trump que se recusam a usar máscara. E como numa torção de consequências imprevisíveis, os manifestantes que colocaram as cidades americanas a ferro e fogo, escolhem igualmente a liberdade de não usar máscara perante um país que os abandonou. Parecem dizer que entre a miséria e o covid, que venha o diabo e escolha.
E é essa diferença também que se nota entre os protestos pacíficos em algumas capitais do mundo, inclusivamente na cidade de Nova Iorque, e os tumultos que atingem diversas outras cidades norte-americanas. A ironia da situação, se de ironia se tratasse, reside no facto de que uma administração que tratou o confinamento decorrente da proteção contra a pandemia de forma tão negligente, impor agora o recolher obrigatório em diversas cidades. Trump é de facto o palhaço perverso dos filmes do Stephen King. Desdenhou de uma pandemia, que exigia confinamento, e que destruiu o provimento de parte da população, e envia agora as tropas para a rua para que estas fiquem limpas de gente e de vozes.