Nem tanto ao mar nem tanto à terra

 

A acusação, totalmente infundada, de misticismo religioso no discurso e actuação de Barack Obama, só pode ser proferida de má-fé. Sucede que se houve alguém que apresentou um lado fanático, sem matizes de qualquer espécie, entre o discurso Mórmon dos valores caseiros e o misticismo das igrejas evangélicas, essa pessoa foi Sarah Palin. A mesma que foi filmada em plena sessão de exorcismo por um daqueles padres que vendem banha da cobra mística aos borbotões na bela América. A mesma que arrastou milhões de red necks ressabiados e abrutalhados, espécie de legiões do sétimo dia acompanhadas de dólares e de in god we trust, com o discurso dos good old american values. A mesma que arregimenta pessoas que acreditam que Obama as manipulava por telepatia, como se vê numa muito engraçada reportagem produzida pela BBC sobre as igrejas evangélicas e a sua campanha pró-McCain.

Sabendo nós que assim se passa, que o lugar do misticismo menos esclarecido, mais atávico e perigoso (com ênfase na palavra) se encontra do lado de Palin e dos seus exércitos de puristas, o que justificará a preocupação da extrema-direita portuguesa (JMiranda, Aberto Gonçalves & comp.) pelo putativo misticismo retórico de Obama? Será o facto de este ser apenas retórico, e por isso mesmo o da srª Palin ser a real thing?

Deixar, igualmente, passar em claro toda uma regência (dificilmente uma administração) de Bush e sua entourage eivada de misticismo grandiloquente, homens que anunciaram a guerra infinita e uma justiça final que imita sem grande esforço metafórico os tons escatológicos do Apocalipse, ainda nos deixa mais incrédulos. Afigura-se que existe um misticismo “bom”, o belicista e do poder hegemónico, e um misticismo “mau” o da esperança dos pobres e despojados, mesmo que não tão despojados, como a classe média norte-americana.

Há quem acuse Marx de misticismo. Não o leram; ou deturparam-no de tal forma que da sua original pena pouco por lá restou. A grande acusação que Marx faz a Feuerbach é justamente a de ser ter protegido num misticismo idealista.

Para ser exacto, existe um misticismo do indivíduo na doutrina neoliberal. Misticismo esse que é, a contrario sensu, muito pouco individualista. Com efeito, os liberais conservadores prestam-se a aceitar, sem rebuço, que para além do indivíduo autónomo existem essas duas entidades místicas chamadas “família” e “nação”. Contrariamente ao que seria esperável de uma doutrina que coloca tanta ênfase no indivíduo e na sua capacidade de escolha, que se afadiga a provar que a noção de colectivo não passa de uma superstição, logo corroboradora de misticismo; que tanta crispação evidencia perante noções como grupo étnico ou classe, aceita a “família” e a “nação” como duas entidades palpáveis, sem grandes delongas racionalistas. Significa que estamos perante uma ontologia que raramente é questionada no próprio seio do liberalismo conservador.

Se a família é mais discutível enquanto realidade palpável, não o será a família harmoniosa, ordeira, hierárquica e fundadora, como é considerada pelo conservadorismo. Outra entidade mística. Com prolongamentos óbvios na nação que, na orgânica da doutrina liberal conservadora ganha um estatuto ontológico para além da indagação, paradoxalmente não concedido a outros colectivos. Um dogma, portanto. Novo misticismo.

O mais estranho é os indivíduos que se dizem adeptos deste credo não inspeccionarem esta lógica sumamente paradoxal que se lhe encontra subjacente. Como pode, numa doutrina cuja proeminência é dada de forma extremada à acção individual, entidades (realidades, no fundo) como família e nação serem aceites aproblematicamente? Interrogação tanto mais pertinente quanto muito do discurso por este credo propalado tem a ver justamente com a superação dos liames impeditivos desta mesma acção social: caso da etnia, da classe, da instituição. Mas não das instituições família e nação. Essas são intocáveis. O princípio ontológico que nos leva a aceitar a inexorabilidade das duas entidades encontra-se imerso nas glaucas águas da mais pura crença ideológica. Nada pode ser logicamente derivado da noção de indivíduo assim como é entendida pelo conservadorismo liberal (neoliberalismo, na realidade) que resulte na inexorabilidade da família e da nação. E todavia, esta palpabilidade das duas noções (transubstanciação propriamente mística) resiste. Consagra-se nos textos de César das Neves ou de Pedro Arroja; assim como nas diatribes de João Miranda sobre o casamento homossexual.

Inconsistência mal analisada ou simples falácia de posição?

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